Com experiências bem-sucedidas de land readjustment (reparcelamento de solo, em tradução livre) em países asiáticos, especialmente no Japão, e na Alemanha, esse instrumento urbanístico tem possibilitado que governos realizem obras de infraestrutura que qualificam e reorganizam áreas, adensam regiões próximas a sistemas de transporte e criam novas centralidades nos municípios. A ferramenta, que é utilizada há décadas em outras nações, é uma alternativa para solucionar o déficit estrutural e a limitação de recursos públicos enfrentados pelo Brasil, defendeu o arquiteto Felipe Francisco de Souza, doutor e pesquisador do departamento de Engenharia Urbana da Universidade de Tóquio, no podcast Caos Planejado.

O reparcelamento do solo funciona a partir da formalização de uma Parceria Público-Privada (PPP) que “busca distribuir os custos e os benefícios de projetos de urbanização entre proprietários de terras e governos”, explica Souza. Dessa forma, os donos de terrenos entram com uma parte de suas áreas para que seja possível aumentar os ambientes públicos de um determinado bairro sem que percam a titularidade dos lotes depois da conclusão do empreendimento. Ao final dos trabalhos, cada envolvido recebe uma parcela de terra ou uma unidade residencial proporcional a sua participação no início da iniciativa, porém de tamanho menor, como detalha matéria do site do Banco Mundial. A redução do terreno (que no Japão gira em torno de 10% a 15%, conforme o arquiteto) é compensada pela valorização do metro quadrado. Essa é uma consequência direta do aprimoramento da infraestrutura local, que fica sob a responsabilidade das prefeituras ou de governos estadual ou federal, que podem transformar o antigo espaço privado em parques, novas edificações ou construir ou expandir estações de trem ou de ônibus, por exemplo.

Para Souza, o mecanismo permite ainda alterar o zoneamento para atender à demanda de uso, rearranjar lotes irregulares, “retirar possíveis vantagens injustas de donos de terras no entorno de sistemas viários ampliados em caso de desapropriação, melhorar o escoamento da produção (em regiões agrícolas) e atualizar a titularidade em situações em que o registro não condiz com a realidade”. Além disso, ele acrescenta que as áreas privadas destinadas ao reparcelamento do solo são empregadas para formar terrenos-reservas, que serão vendidos no mercado para ressarcir os desenvolvedores dos projetos que, na maioria das vezes, são os próprios governos.

Esse reajuste de terras viabiliza que administrações públicas assumam planos de regeneração urbana, de acordo com o Banco Mundial, “por meio do aumento do valor dos lotes ao mesmo tempo em que envolvem os moradores e proprietários originais no empreendimento”. Outra vantagem é que os governos não precisam desembolsar um grande investimento inicial para comprar as áreas, como ocorre nos casos de desapropriações. Já para o consultor legislativo do Senado no segmento de Desenvolvimento Urbano e coordenador do Núcleo de Cidade e Regulação do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper, Victor Carvalho Pinto, o reparcelamento do solo é também uma opção para reurbanizar regiões que tiveram o seu perfil e vocação alterados ao longo dos anos e não contam com espaços de lazer, escolas ou até mesmo transporte. A afirmação foi feita por ele no podcast Somos Cidade apresentado pelo coordenador do movimento, Felipe Cavalcante,

Modelo de ampliação do sistema viário de Tóquio utiliza ferramenta urbanística há décadas

A capital do Japão apostou no reparcelamento do solo para construir ou expandir as estações de metrô e de trem na cidade há muitos anos, como aponta o arquiteto e pesquisador da Universidade de Tóquio Felipe Francisco de Souza. Em entrevista para o podcast Caos Planejado, ele comentou que muitos proprietários de terra daquele país aderem a esse mecanismo de desenvolvimento para terem acesso a maiores coeficientes de aproveitamento dos seus lotes. Souza descreve que, quando havia mais terrenos disponíveis em Tóquio, o governo coordenou um programa que usava o reparcelamento do solo para consolidar várias áreas em uma só, que era destinada à implementação do sistema viário. “Muitas vezes, a própria empresa de trem ou de metrô japonesa comprava várias propriedades, enquanto os seus valores ainda estavam baixos e a iniciativa da estação não havia sido anunciada, se tornando muitas vezes uma das principais donas de imóveis na região”, observa.

Nesses casos de parcelamento do solo, pondera o arquiteto, a infraestrutura veio antes do adensamento da localidade. Atualmente, a situação é inversa, com a expansão dos sistemas viários ocorrendo depois da ocupação do lugar por uma grande quantidade de pessoas e edificações. Diante desse cenário, a solução encontrada por Tóquio para a realização de obras estruturais envolve a definição, por parte do governo, de quantos e quais prédios precisam ser demolidos para que sua área seja incorporada para a construção de empreendimentos ainda maiores e com mais pavimentos e da estação de transporte. O objetivo é, após a conclusão dos complexos, oferecer ambientes mais qualificados e facilidade de locomoção para os moradores.

A ideia da administração da cidade era criar um modelo financeiro em que todos ganhassem e para isso optou pelo reparcelamento do solo ao invés das desapropriações, segundo Souza. Com esse recurso, as companhias operadoras do transporte público podem expandir os seus sistemas viários, elevar a renda das estações tanto com a venda das passagens como com a monetização dos espaços – seja por meio do arrendamento dos pisos e arredores da estrutura ou de locais para anúncios – e testar diferentes tecnologias. Por outro lado, o setor de construção civil consegue novos projetos habitacionais e comerciais para executar e a população tem acesso a mais moradias e a um transporte público aprimorado. E, completando esse ciclo de benefício para todos, o governo coleta mais impostos com o maior número de edificações concluídas, salienta o arquiteto.

Essa ferramenta urbanística foi empregada para a revitalização de áreas do Japão atingidas por terremoto já na década de 1920 e também após a segunda guerra mundial, relata Souza. Com décadas de experiência na sua utilização, a recuperação de solo efetuada no país tem sido exemplo para diversas nações. Souza acrescenta que, hoje em dia, em regiões onde já existem construções, os projetos dessa natureza são feitos em etapas. “Primeiro, se reorganiza as propriedades menos adensadas e, na sequência, os demais prédios. Para acomodar temporariamente os moradores dessas localidades podem ser erguidas edificações, que depois são demolidas, ou essas pessoas se mudam para a casa de familiares ou para outros lugares, com a administração pública auxiliando no pagamento do aluguel desses imóveis”, pontua.

 

Desafios para a adoção da recuperação do solo no Brasil

As discussões sobre o tema vêm ganhando espaço entre arquitetos, urbanistas, engenheiros e juristas brasileiros, que reconhecem que a ferramenta urbanística pode ser uma alternativa para o “estrangulamento do desenvolvimento no País”, como assinala o consultor legislativo do Senado, Victor Carvalho Pinto. Ele argumentou, durante o podcast Somos Cidade, que não adianta os municípios elaborarem os melhores planos diretores se eles não adotarem um sistema como o de parcelamento do solo para contar com áreas para a realização das obras de infraestrutura. “Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte estão debatendo esse assunto, mas ninguém conseguiu levar a questão adiante”, informa. Há também um projeto de lei sobre esse instrumento em análise na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, de acordo com o consultor.

Para Victor Carvalho Pinto, o modelo jurídico de reparcelamento do solo no Brasil precisa vir acompanhado de um “poder de desapropriação, que não pode ser visto como uma punição”. A desapropriação deve ser generosa, na opinião do consultor. Ele inclusive lembra que, atualmente, já é permitida a arbitragem para situações desse tipo no País, para que se alcance um preço justo pelas terras. Com isso, seria possível conquistar um maior engajamento dos proprietários de terrenos nos empreendimentos que usem o reparcelamento para a reorganização do espaço urbano, na avaliação dele. Ele frisa ainda que na proposta em análise no Senado está prevista a possibilidade de criação de um fundo imobiliário para execução dos projetos e aquisição das áreas necessárias para esse fim. “Nesse caso, o dono original do lote ou do imóvel trocaria a sua participação por uma cota desse fundo – que pode ser revendida no futuro”, adianta.

O arquiteto e pesquisador Felipe Souza considera que o instrumento pode ser uma opção viável para reduzir o déficit estrutural do País. No entanto, a falta de confiança das pessoas em seus governos – seja devido aos casos de corrupção ou ao histórico de iniciativas que são descontinuadas com a mudança das gestões nas eleições – é uma das barreiras para o uso desse mecanismo ressaltadas por Souza. “E há também um projeto de Estado mínimo para o Brasil, que é inviável para ações de reparcelamento do solo, que precisam de estabilidade institucional e de uma capacidade de articulação robusta entre diversos agentes”, sinaliza.

A matéria do Banco Mundial agrega que essa ferramenta demanda uma estrutura legislativa sólida para ser implementada de maneira eficaz. Outro desafio pontuado pela instituição financeira é o de obter o consentimento de todos os proprietários de terra para a concretização dos empreendimentos. Por isso, a importância da confiança na capacidade dos governos de tirarem do papel as iniciativas e finalizá-las. Souza enfatiza que, quando bem executados, os planos de recuperação do solo podem contribuir para a realização de projetos urbanísticos baseados no “consentimento dos governados e em igualdade por meio da distribuição justa dos custos e benefícios do desenvolvimento”. Além disso, podem colaborar para uma tomada de decisão mais transparente.

Assista aos podcasts:

Caos Planejado – Urbanismo de Tóquio, com Felipe Francisco de Souza – clique aqui

Somos Cidade – Legislação urbanística e novos instrumentos de gestão urbana, com Victor Carvalho Pinto – clique aqui

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