Cidade-Jardim
crédito fotos: Reprodução https://www.wgc100.org/

O modelo Cidade-Jardim surgiu no Século XIX como alternativas às cidades industriais. Hoje é um conceito ultrapassado, baseado no rodoviarismo, que aumenta o espraiamento urbano e impacta negativamente o meio-ambiente.

A reconexão com a natureza e com um estilo de vida mais tranquilo que o dos grandes centros urbanos é um desejo que vem sendo manifestado por um número cada vez maior de pessoas nos últimos anos e que ganhou uma nova dimensão com a pandemia de coronavírus. Nesse contexto, o conceito de cidades-jardim idealizado pelo planejador inglês Ebenezer Howard na virada do século 19 para o 20 volta a chamar a atenção de desenvolvedores imobiliários e a ser analisado como alternativa para a criação de espaços que aliem áreas verdes às facilidades e comodidades das metrópoles e atendam às demandas atuais por outra maneira de morar.

A visão utópica de Howard para seus distritos autônomos, igualitários e com forte senso comunitário será, inclusive, tema de um simpósio internacional que ocorrerá nos dias 15 e 16 de setembro de forma on-line e presencial em Welwyn Garden City, na Inglaterra. A localidade, que completou 100 anos em 2020, é uma das duas cidades-jardim implementadas por Howard no cenário de pós-revolução industrial daquele país – a outra é Letchworth, fundada em 1903.

Apesar de ainda ser debatida hoje e ter influenciado outras regiões pelo mundo a reinterpretarem o modelo de acordo com suas particularidades geográficas, sociais e históricas, como São Paulo (SP), na elaboração dos bairros Jardim América e Cidade Jardim, da Companhia City, Maringá (PR) e Goiânia (GO), a proposta de Howard passou a ter a sua eficácia no cenário atual questionada. O relatório da organização Future Spaces Foundation, Cidades vitais e não cidades-jardim: a resposta para a carência habitacional do país?, sugere que o foco no Reino Unido para suprir a falta de moradias deveria ser o adensamento dos distritos já existentes e não a construção de novos lugares nos moldes desenhados pelo planejador inglês.

O estudo alega também que municípios mais densos oferecem aos seus residentes acesso fácil a serviços, comércio e empregos, assim como encorajam as pessoas a caminharem ou pedalarem até os seus destinos. Os benefícios dessa mudança de olhar sobre os ambientes urbanos vão da melhora da saúde e bem-estar dos moradores à transformação desses espaços em locais mais sustentáveis economicamente e ambientalmente. Para o fundador do Future Spaces Foundation, Ken Shuttleworth, a percepção negativa que muitos cidadãos têm sobre lugares adensados pode ser alterada com a combinação de design inteligente das cidades – mesclado casas, transporte, lojas e áreas de lazer e verdes – com a oferta de mais vagas de trabalho e oportunidades para a revitalização das comunidades.

A pouca densidade dos lugares projetados por Howard e a proximidade deles aos grandes centros, onde estão as empresas, escritórios e a maioria das chances de se conseguir uma ocupação, acabaram tornando essas localidades em “cidades-dormitório enfadonhas e voltadas para o lucro”, como descreve a arquiteta Frances Holliss em artigo no jornal britânico The Guardian. Além de ultrapassado, o método do planejador inglês teve, com o passar do tempo, a sua nomenclatura utilizada para identificar empreendimentos que buscam integrar ambientes arborizados com o panorama urbano. Porém, com “um grande distanciamento em relação à concepção original das cidades-jardim”, pondera a arquiteta e urbanista Susanna Moreira em artigo no ArchDaily.

Já a postagem do blog Realidades Urbanas considera que a ideia de Howard foi “reduzida a um bairro suburbano que oferece contato com a natureza e está afastado do centro dos municípios”. O texto avalia também que o termo começou a ser usado para o lançamento de condomínios fechados de alto padrão e separados da vida urbana, o que inviabilizaria a integração e convivência entre os diferentes públicos que compõem um distrito.

Da conceituação à situação atual das localidades

As cidades-jardim de Howard nasceram como uma resposta aos empecilhos que se apresentavam na Inglaterra do início dos anos 1900, com regiões que enfrentavam a poluição causada pelas indústrias, o crescimento das ocupações irregulares e o movimento ascendente de pessoas que vinham do campo em busca de melhores oportunidades, como detalha Susanna Moreira na publicação do ArchDaily. Diante desses fatos, o planejador inglês estabeleceu um modelo que tentava equilibrar as qualidades dos centros urbanos com as das zonas rurais. Sua iniciativa foi divulgada pela primeira vez em 1898 e disseminada por meio do livro Cidades-Jardim do Amanhã, de 1902. “A cidade e o campo devem se casar e dessa alegre união nascerá uma nova vida, uma nova esperança, uma nova civilização”, defendia Ebenezer Howard.

A intenção era construir pequenos distritos que concentrariam as vantagens dos dois contextos: juntando áreas verdes a lugares mais desenvolvidos que concentravam as vagas de emprego. Uma das características do seu plano foi a definição de um diagrama com três imãs: dois deles apontando os aspectos positivos e negativos dos municípios e do campo e o terceiro formado pelos benefícios dos outros dois: as cidades-jardim. Esses ambientes eram em menor escala e acomodavam moradia, indústria e agricultura, todos “circundados por cinturões verdes que limitariam a sua expansão”, informa Suzana. Com estrutura radial, eles tinham na parte central um grande espaço destinado para um parque e em seu entorno ficariam os prédios públicos e culturais, como teatros, museus, bibliotecas, e o hospital, com fácil acesso. Os locais comunicavam-se por meio de uma rede de vias interligadas.

Para difundir seus conceitos, Howard colaborou também para a criação da Associação Cidade-Jardim na Inglaterra, em 1899. Entre esses princípios, que hoje são reforçados pelo Instituto Internacional de Cidades-Jardim, estão a promoção da saúde e bem-estar das pessoas, justiça social, eficiência econômica, intenso envolvimento e liderança das comunidades, áreas verdes generosas, propriedade da terra e administração de ativos a longo prazo pelos residentes e oferta de emprego na própria cidade-jardim ou a uma curta distância. Apesar de tentarem manter viva a idealização de Howard, a realidade de lugares como Welwyn, na Inglaterra, está longe da sua concepção original.

A devolução dos lucros relativos ao território não ocorre mais em Welwyn, como previsto pelo planejador inglês, destaca matéria do The Guardian sobre o centenário desse município. “Todos os ativos gerados por meio do método das cidades-jardim foram vendidos”, enfatizou, ao jornal, a diretora de Comunidades da Town and Country Planning Association, Katy Lock. Sem recursos para a gestão e manutenção, a localidade transformou-se em um lugar como tantos outros. Além disso, empresas foram fechadas na região e os valores dos imóveis e a proximidade de Londres atraíram muitas famílias, aumentando a demanda por habitações e, consequentemente, os preços. O texto revela ainda que uma das preocupações é que Welwyn e outras áreas como ela se tornem “pouco mais que cidades-dormitório e não espaços independentes e voltados para a comunidade”.

Sem readequação, proposta não resolve demandas contemporâneas

A segregação entre viver e trabalhar é um dos maiores problemas das cidades-jardim hoje, salienta a arquiteta Frances Holliss em seu artigo no The Guardian. Ela ressalta que o pensamento central de Ebenezer Howard era introduzir nos seus ambientes o zoneamento funcional, separando moradia dos empregos. Situação essa que manteve a necessidade de muitas pessoas se deslocarem diariamente entre esses dois destinos. Frances aponta também que a principal questão que deveria estar em discussão é se esse tipo de projeto funciona atualmente ou se há apenas um olhar nostálgico para o passado. A arquiteta observa que, mesmo com as inovações trazidas naquela época, as dificuldades dos municípios são outras agora, assim como as necessidades de seus residentes. “Deveríamos seguir seu método (de olhar os empecilhos e encontrar soluções novas), não adotar sua ideia ultrapassada”, afirma.

De acordo com o texto, uma a cada sete pessoas do Reino Unido exercia sua profissão em casa em 2017, taxa que aumentou recentemente e que deve permanecer alta no pós-pandemia, indicando a urgência de repensar a relação entre morar e trabalhar e reduzir as circulações desnecessárias. Para ela, a crise ambiental, o crescimento populacional, a escassez de habitações e a pressão sobre as infraestruturas de transporte não serão resolvidas pelo modelo de Howard. “Precisamos parar de nos deslocar e sermos muito mais enraizados em nossos bairros”, sentencia. Frances defende ainda que poder atuar em sua própria residência dá aos cidadãos mais controle sobre suas vidas, assim como intensifica o uso de todo o estoque de construções. Com mais pessoas ficando em seus imóveis, há menos necessidade de escritórios, projeta a arquiteta. Dessa forma, prédios industriais e comerciais não utilizados poderiam ser convertidos em moradias, auxiliando a reverter a falta de unidades.

Repensar as cidades-jardim, intercalando ruas para habitações e para locais de trabalho conectadas por jardins, é uma das possibilidades sugeridas por Frances. A inclusão de lojas, padarias, restaurantes, estúdios, salas comerciais e outros ambientes junto às casas é outra ideia defendida pela arquiteta, que frisa que edifícios de apartamentos poderiam contar também com pavimentos inteiros voltados para negócios, mesclando as funções e sendo administrados coletivamente pelos residentes ou por uma organização central. No artigo, ela enfatiza que as oportunidades são muitas e essa movimentação poderia reformular a “maneira como pensamos a moradia e os espaços de trabalho no dia a dia, bem como uma série de estruturas de governança: do planejamento à tributação da propriedade”.

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