Assim como as pessoas sentem dores pontuais que se irradiam pelo corpo, as cidades veem seus problemas localizados se ramificando para diferentes camadas do tecido urbano, causando prejuízos sociais, ambientais e para a mobilidade de seus moradores. A “cura” para muitas dessas dificuldades pode estar em uma ferramenta que promove a transformação de ambientes públicos degradados a partir de ações extremamente focadas: a acupuntura urbana. Da mesma maneira que a agulha usada na prática da medicina chinesa alivia o desconforto físico de forma precisa, a tática alternativa de planejamento incentiva medidas “cirúrgicas” e estratégicas para regenerar espaços e qualificar a infraestrutura disponível para as comunidades.

Com uma escala variável, as iniciativas não precisam necessariamente contar com grandes orçamentos ou intervenções para trazerem benefícios imediatos para os municípios. Um dos principais defensores desse instrumento, o arquiteto e urbanista Jaime Lerner – falecido em maio deste ano – lançou, em 2003, o livro Acupuntura Urbana, uma de suas principais obras. Para Lerner, como afirmou em entrevista para a revista Casa Vogue,  “bons sistemas de transporte coletivo, uma esquina iluminada pelo comércio noturno, uma feira ao ar livre, a recuperação ambiental de um rio e cuidar bem de sua calçada”, são exemplos de como a acupuntura urbana pode ser aplicada.

O termo foi usado pela primeira vez pelo arquiteto espanhol Manuel de Solà-Morales, idealizador de uma série de mudanças urbanísticas que revolucionaram e abriram Barcelona (Espanha) para o mar antes das Olimpíadas de 1992, e vem sendo ressignificado e adotado por profissionais de todo o mundo, com destaque para o arquiteto finlandês Marco Casagrande, como aponta matéria do ArchDaily. Envolvendo projetos com elevado grau de reversibilidade, a proposta permite que correções e melhorias sejam efetuadas a qualquer momento, o que assegura dinamismo para a gestão das localidades e a adaptação das ações às necessidades de seus usuários.

Três vezes prefeito de Curitiba e duas vezes governador do Paraná, Lerner via a acupuntura urbana como um meio para aprimorar os ambientes públicos, “contornando longos processos de tomada de decisão e superando os impedimentos econômicos”, como assinala o texto do ArchDaily. Menos burocrático, o instrumento auxilia e agiliza a implementação dos planejamentos das cidades e suas medidas pontuais podem levar a uma reação em cadeia de aperfeiçoamento dos lugares do entorno, “aumentando a coesão social e a segurança das pessoas”. A técnica também está ligada à valorização das comunidades e das culturas locais, acrescenta a reportagem da Casa Vogue.

Lerner declarou na entrevista para a publicação que essa prática possibilita criar um “tecido urbano mais saudável, com uma oferta mais generosa e equilibrada de espaços públicos e de equipamentos para a população”. Para ele, a ferramenta pode contribuir para diminuir as desigualdades sociais existentes nos municípios. Nesse sentido, a revitalização da Comuna 13, em Medellín (Colômbia), foi destacada pelo arquiteto como uma boa referência de utilização do método. Com altos índices de criminalidade – na década de 1990 foi considerada a cidade mais violenta do mundo –, o bairro começou a ver sua realidade se alterar a partir da melhoria da mobilidade e do acesso ao lugar, que fica em um morro. Por meio do programa de Projetos Urbanos Integrais (PUI), a localidade instalou 12 escadas rolantes (6 para subir e 6 para descer) para facilitar a circulação dos residentes – atualmente 12 mil pessoas são atendidas pela iniciativa, segundo a Prefeitura de Medellín. O trajeto equivale ao descolamento em um prédio de 16 andares, totalizando uma extensão de 384 metros.

A medida, iniciada em 2004 e coordenada pelo arquiteto colombiano Gustavo Restrepo, abrangeu também o alargamento de vias, construção de parques-bibliotecas, colégios públicos e de um teleférico na região e a busca de novas soluções para tratamento dos resíduos sólidos. “Ao inserir no contexto urbano intervenções arquitetônicas de qualidade, Medellín como um todo experimentou um declínio dramático de seus índices de violência e é hoje uma das localidades mais empreendedoras da América Latina”, complementou Lerner. Com ações culturais e educativas, a área tornou-se também ponto turístico devido à arte urbana que colore muros e paredes e uma inspiração para outros países.

Restrepo já enfatizou que a solução adotada em seu país foi planejada em cima da realidade e das características daquela comunidade e que, por isso, replicá-la em outra nação não é garantia de que os mesmos resultados sejam alcançados, já que os cenários e necessidades são distintos. Em entrevista para o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), na ocasião da sua participação no Urban Thinkers Campus Recife, organizado pelo Centro de Pesquisa e Inovação para Cidades da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com o apoio do CAU/PE e CAU/BR, ele ressaltou que “o que se deve copiar é a metodologia”. O arquiteto argumentou também que a formação de uma nova cultura cidadã foi essencial para a implementação do plano de desenvolvimento urbano, que alavancou Medellín após a era do narcotraficante Pablo Escobar, que dominava a cidade.

 

Vazios urbanos e ambientes abandonados transformados em jardins comunitários

Com investimentos relativamente baixos, a criação de pequenos parques ou de espaços verdes cuidados pelos próprios moradores da região onde estão instalados é uma das muitas atividades que a acupuntura urbana possibilita. Essas ações, que podem ser consolidadas rapidamente, trazem vantagens relevantes para a saúde mental dos cidadãos e para a segurança no local. O projeto Urban Bloom, em Shanghai (China), é um exemplo de uso da tática para devolver um lugar com mais qualidade de vida para a população.

Um pop-up jardim foi elaborado para ocupar um antigo estacionamento. Concebido pelo escritório AIM Arquitetura, em conjunto com o programa Urban Matters e a marca de automóveis MINI (que está expandindo seus negócios para o desenvolvimento urbano), o ambiente conta com módulos dispostos em diferentes alturas e formatos em um trecho da rua Anfu, criando um cenário ondulado e divertido. O espaço possui ainda estruturas com balões e plantas coloridas em seu interior, remetendo de maneira lúdica ao desenho de árvores. Diferentes flores e vegetações foram postas entre os módulos, trazendo sombras e formas variadas para a área.

A via escolhida para a iniciativa, uma rua popular de Shanghai, mescla complexos residenciais com escritórios, restaurantes, lojas e escolas e é, conforme os profissionais do AIM Arquitetura, uma prova de que não é necessário “nivelar a cidade antiga para ter uma nova localidade ou para gerar prosperidade para uma região que está em constante evolução”. O traçado do jardim convida os visitantes a explorarem o lugar, que pode ser utilizado para reuniões de pessoas, minipalestras e teatro ao ar livre.

Conexão com a natureza a partir da acupuntura urbana

O arquiteto finlandês Marco Casagrande é outro grande defensor da prática nas metrópoles e da combinação do desenho urbano com soluções sustentáveis. Para ele, as cidades são como “organismos complexos nos quais diferentes camadas sobrepostas de fluxos de energia determinam as ações dos cidadãos e também o desenvolvimento das localidades”, enfatiza a apresentação do profissional no site do seu escritório, o Casagrande Laboratory. A intervenção arquitetônica Cicada, em uma área industrial de Taipei (Taiwan), é a materialização dos conceitos de acupuntura urbana a partir da visão do arquiteto.

O espaço público, implantado no meio de um parque e é utilizado pela vizinhança e como lounge para oficinas universitárias e outras atividades, é constituído por uma estrutura de bambu dobrado, que foi sendo erguida como uma cesta – em camadas –, tendo como base terra, cascalho e pedra. Quando se entra no ambiente em forma de casulo de uma cigarra, Taipei desaparece lá fora com seu trânsito e ritmo acelerado. “É um local que respira, vibra, é macio e seguro”, relata Casagrande na descrição do case.

O casulo possui claraboias elípticas no teto para assegurar a entrada do ar e da luz, permitir uma vista única do céu durante a noite e para funcionar como chaminé para a fumaça gerada quando uma fogueira é acessa em seu interior. A proposta de Casagrande era promover o contato da comunidade com a natureza e conceber algo mutável. Para isso, foi plantada uma vegetação ao pé da estrutura, que com o passar do tempo vai se entrelaçando com o bambu e transformando o lugar e a percepção de quem passar pela região. A ideia era criar algo que parecesse fora do lugar, tanto no tempo como no material empregado, informa a matéria do ArchDaily.

Recuperação de espaço na Croácia incentiva a socialização à beira do rio

Em 2020, a cidade croata de Rijeka foi a capital cultural da União Europeia, em conjunto com Galway (Irlanda), e recebeu uma instalação idealizada para dar o passo inicial na regeneração de uma área nas margens do rio Danúbio. O Leven Up foi projetado pelos arquitetos Brett Mahon, Joonas Parviainen, Saagar Tulshan e Shreyansh Sett para ser um novo ambiente para os moradores e visitantes se encontrarem e aproveitarem a paisagem local. Conforme reportagem da revista Deezen, a iniciativa integrou a programação do Architecture Students ‘Assembly, de 2018, e propôs a construção de um pavilhão como uma extensão ao Export Drvo, um edifício de armazenamento industrial de 1950, que fica próximo ao rio. A estrutura funciona também como mobiliário urbano e é formado por diversos níveis que se comunicam a um terraço erguido na cobertura do prédio.

Andaime de aço, tábuas e decks de madeira foram usados para definir as alturas, degraus e os espaços onde as pessoas podem sentar ou relaxar em uma rede que é colocada ao longo da escada que leva até o terraço. Para os arquitetos envolvidos na medida de acupuntura urbana, o Leven Up se “concentra na revitalização do espaço existente ao invés de criar uma nova área pública”.  Em estilo industrial, o projeto oferece no terraço uma plataforma para contemplar a cidade e para a realização de palestras. Efêmera, a ação leva a uma reflexão sobre a impermanência material e espacial, como reforça a Deezen.

Parque Orla do Guaíba traz nova vida para o Centro de Porto Alegre

Em 2020, o arquiteto Jaime Lerner lançou uma edição ampliada do seu livro Acupuntura Urbana, com fotografias e ilustrações de medidas concretizadas em diferentes países, como detalha a reportagem da revista ÁREA. Na nova versão, ele mostrou que os processos de cura dos problemas das cidades são distintos e demandam soluções individualizadas e práticas. E essas “feridas” no tecido urbano podem ser resolvidas com a modificação do traçado de uma rua, com ações sustentáveis ou com projetos maiores, como a criação de um novo sistema de locomoção público – como o feito por ele em Curitiba, com a rede Integrada de Transporte (RIT). O Parque Urbano da Orla do Guaíba, na capital gaúcha, é outro exemplo de como Lerner empregou a metodologia para a recuperação ambiental e a revitalização de uma região.

Proporcionar uma maior conexão da população com o lago Guaíba e reforçar as vocações para o turismo, esporte e lazer de uma área de 56,7 hectares no Centro da cidade eram alguns dos desafios apresentados pela Prefeitura de Porto Alegre ao escritório de Lerner. Planejada entre 2012 e 2018, a proposta envolve a regeneração urbana e ambiental de um trecho que, quando estiver com suas três fases concluídas, se prolongará por mais de sete quilômetros, a partir da Usina do Gasômetro, um dos cartões postais da capital. A primeira parte do parque foi inaugurada em 2018 e possui decks de madeira, arquibancadas e passarelas que convidam as pessoas a aproveitarem o famoso pôr do sol no Guaíba.

A mobilidade é outro elemento importante do projeto, que está bem conectado à malha viária, sendo acessada facilmente a pé, pela ciclovia, via transporte público ou carro. Quadras esportivas, atracadouro para barcos de passeios turísticos, bares e um restaurante panorâmico complementam a infraestrutura disponibilizada. Segundo a descrição da iniciativa no site do escritório, o parque mostra que a simbiose entre os ambientes construído e natural é possível a partir da união da arquitetura, paisagismo e luminotecnia.

A segunda etapa contará com espaços para o lazer e a terceira, que segue até o Parque Gigante do Sport Club Internacional, será voltada para os esportes, com a maior pista de skate da América Latina e equipamentos para a prática de atividade física, além de bares e arborização. “É uma acupuntura que cumpre múltiplas finalidades: a recuperação ambiental de um trecho da orla, a revitalização da área central de Porto Alegre e a criação de um espaço público democrático e de qualidade”, enfatizou o arquiteto em entrevista para a revista Casa Vogue.

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