Com a proibição de adensar os bairros centrais, que são dotados de mais infraestrutura, os zoneamentos de diversas cidades pelo mundo e das brasileiras, em especial, incentivam o crescimento espraiado dessas localidades. Em consequência disso, as pessoas têm que se deslocar para as regiões metropolitanas, onde encontram opções mais acessíveis de habitação. Além de provocar a elevação dos valores dos imóveis, as normas existentes de desenvolvimento urbano acarretam a menor disponibilidade de residências em lugares próximos aos empregos, lazer, comércio, serviços e transporte público. “Tendo uma demanda cada vez maior e uma oferta menor de unidades nas zonas centrais, os preços das moradias nesses pontos aumentam significativamente”, reforça Felipe Cavalcante, coordenador do movimento Somos Cidade, fundador da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit) e empresário com mais de 26 anos de experiência no setor imobiliário.
A modificação dos zoneamentos é, hoje, o item mais relevante para reduzir a escassez de habitação e, consequentemente, diminuir os valores dos imóveis, defende Cavalcante. O coordenador do Somos Cidade acredita que um dos caminhos possíveis para o País seria ter um mix de zoneamentos regionais mais abrangentes e estratégicos conciliados aos zoneamentos locais. “Algo como já acontece nos Estados Unidos, que possui regras municipais, estaduais e também a dos condados, que incluem vários municípios próximos”, sugere. Conforme ele, na hora de legislar sobre política urbana e zoneamento é importante olhar as localidades como um todo – evitando que as decisões sejam influenciadas somente por aqueles que serão diretamente afetados pelas mudanças propostas e que, muitas vezes, focam apenas em suas necessidades e não veem o panorama geral das cidades. “Ou seja, apesar de ser importante ouvir quem vive na região que passará por alterações, é preciso criar mecanismos que garantam que os interesses dos demais cidadãos sejam considerados”, afirma.
Ao não permitirem a construção de novas residências em determinados lugares, as regras restritivas de ocupação do solo acabam prejudicando não apenas aquele local, mas também o seu entorno. Como as pessoas precisam morar, o problema da falta de habitações sai de um bairro para outro ou de uma cidade para outra – uma situação que já ocorre em Belo Horizonte e São Paulo, exemplifica Cavalcante. Por isso, a reavaliação dos zoneamentos, incluindo a possibilidade de adensar áreas e elementos como a quantidade e a qualidade dos ambientes urbanos, é fundamental para transformar a realidade atual de escassez de imóveis e dos seus altos preços, aponta o coordenador do Somos Cidade.
Além de ser uma solução para a pouca oferta de habitações, a densidade é vista hoje pelos próprios ambientalistas como “um antídoto para os padrões de desenvolvimento em expansão que alimentam congestionamentos e emissões automotivas” que provocam o efeito estufa, como destaca matéria do New York Times. Cavalcante complementa ainda que as modificações nas legislações deveriam envolver o estímulo às fachadas ativas, ao uso misto do solo, calçadas mais largas e uma série de atividades que podem aprimorar os espaços para serem utilizados pelos cidadãos.
Estados podem ser mais efetivos na redução das restrições de construção
A crise habitacional tem levado muitos países a questionarem e debaterem alternativas para modificar as normas vigentes de desenvolvimento dos municípios. Nos Estados Unidos, por exemplo, o zoneamento unifamiliar, visto como algo entrelaçado à cultura norte-americana, vem recebendo críticas e sendo repensado por muitos defensores da questão da moradia. De acordo com a reportagem do New York Times, essa forma de ocupação do território é praticamente um “evangelho na América do Norte, seguido por proprietários e governos municipais para proteger bairros de casas únicas de um crescimento mais denso nas proximidades”.
A estratégia adotada para alterar esse cenário tem sido a de buscar as esferas estaduais e até federais para diminuir as restrições construtivas em regiões centrais e com acesso ao transporte público, serviços, comércio e oportunidades de trabalho. Em recente artigo para o Instituto Sightline, o pesquisador sênior Michael Andersen relata que há mais probabilidade de aprovar reformas nos zoneamentos nos âmbitos estaduais e até federais do que nos governos municipais. Segundo Andersen, as alterações em maior escala podem “entregar um benefício crucial que os esforços locais não podem: reduzir os preços das casas”.
O pesquisador compartilha a mesma opinião do repórter de habitação da Vox, Jerusalem Demsas, sobre a necessidade de os Executivos estaduais, provinciais e federais interferirem para tornar a moradia abundante em áreas ricas em trabalho. Demsas defendeu suas ideias no podcast do também repórter Ezra Klein, do New York Times. “Quando as cidades têm falhado sistematicamente em construir as residências que precisamos, é hora dos estados ou províncias intervirem e regularem essas localidades – para afirmar o poder do Estado de definir os padrões básicos para o zoneamento local”, frisou Andersen em seu artigo.
Outro ponto abordado pelo pesquisador é o reflexo das ações municipais no entorno. Ele argumenta que a mudança do zoneamento local traz benefícios apenas ao próprio território. De acordo com o pesquisador, a permissão de construir outros tipos de imóveis em regiões onde antes era possível ter apenas os unifamiliares atrairia a instalação de lojas e comodidades perto do transporte público, melhorando a circulação e a base tributária da cidade, e agregaria novas habitações, impactando na oferta e nos preços das moradias. Mas, todo o trabalho desencadeado para alcançar essa transformação seria, para ele, uma “gota no balde do vasto mercado imobiliário regional”. Por isso, a urgência de pensar em um zoneamento mais amplo, estadual, que possa resolver a questão de maneira conjunta e não distribuindo o problema de um município para os dos arredores, que também enfrentam suas dificuldades nesse segmento.
Movimentos contrários ao adensamento dificultam mudanças nas leis
A existência de uma minoria “muito barulhenta”, movida por questões ideológicas, que são contra o avanço dos municípios, é um dos entraves ao andamento das reformas nos zoneamentos, salienta Cavalcante. “Existe um grande rancor, um ranço, contra o desenvolvimento imobiliário, pois muitas pessoas acham que ele – ou seja, a produção de habitação para os cidadãos – é o mesmo que especulação imobiliária”, avalia. Esse movimento, pondera o coordenador do Somos Cidade, é potencializado pela mobilização de associações de moradores e pelos Nimbys (do inglês, Não no Meu Jardim), que querem manter seus privilégios de viver em áreas com opções de lazer, comércio, serviços e empregos. “Todo mundo quer viver em uma casa no centro da cidade, ou, em algumas situações, em mansões, como nos Jardins, no meio de São Paulo, mas isso é uma coisa totalmente fora de sentido. Precisamos, cada vez mais, trazer as classes média e média baixa para morar nessas regiões, e isso só é possível através do adensamento, da verticalização”, assinala.
Apesar de não contemplarem a visão de todos os habitantes de um bairro, muitos deles favoráveis a novos empreendidos que valorizariam os seus patrimônios, as associações de moradores e os Nimbys exercem “grande e desproporcional influência” nos governos locais na decisão sobre a concretização ou não de obras de infraestrutura e de qualquer tipo de desenvolvimento nas localidades. “Deixando esses gestores e autoridades reféns”, declara Cavalcante. O coordenador do Somos Cidade complementa que tudo que vá “alterar o status quo deles (associações de bairro), eles são contra”.
Ele conta também que esses grupos conseguem se articular com integrantes das academias e facções ideológicas, inclusive lançando campanhas profissionais e que envolvem valores significativos, alcançando uma ampla repercussão na mídia e impactando no posicionamento de funcionários das administrações públicas. “Como a maioria silenciosa não se articula para fazer uma contramobilização, muitos projetos que acrescentariam mais residências deixam de ser construídos”, alega.
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