Criar áreas dinâmicas que ofereçam experiências capazes de competir com as comodidades da internet e do home office, fazendo com que valha a pena para os indivíduos saírem de suas residências, é um dos caminhos apontados para os lugares se reinventarem após as alterações desencadeadas pela Covid-19.
Apesar da redução do número de empresas adotando o home office ou o modelo híbrido (alternando dias em casa e no emprego) atualmente, esse índice está longe de voltar aos padrões verificados antes da pandemia de coronavírus, promovendo mudanças permanentes na forma de trabalhar, de morar e de viver os espaços urbanos. Pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) revela que 32,7% das companhias do Brasil tinham funcionários atuando remotamente em outubro de 2022. Em 2021, esse patamar era de 57,5%. O estudo sobre as tendências nesse segmento, realizado por Stefano Pacini, Rodolpho Tobler e Viviane Seda Bittencourt, apurou também que o percentual de pessoas em home office ou no semipresencial passou de 55,5% em 2021 para 34,1% em 2022.
Ainda conforme o levantamento, os empresários tinham a expectativa de que com a melhora do quadro sanitário o trabalho remoto apresentasse uma queda significativa, o que não ocorreu. Os reflexos dessa transformação comportamental podem ser percebidos na baixa ocupação de prédios de escritórios em regiões centrais e no menor movimento em seu entorno. Esse fator aliado às facilidades do mundo virtual, que tem sido fonte inclusive de entretenimento e de consumo, afasta os indivíduos das ruas, diminui a socialização e deixa os municípios menos vibrantes. Reconfigurar as localidades para que elas ofereçam experiências que façam as pessoas saírem de suas habitações e aproveitarem os ambientes urbanos é a proposta da cidade playground.
O conceito foi detalhado pelo economista e presidente do Departamento de Economia da Universidade de Harvard, Edward Glaeser, e pelo arquiteto e engenheiro do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Carlo Ratti, em recente artigo publicado no jornal The New York Times. Partindo da realidade pós-Covid-19 de Nova York (EUA), os pesquisadores assinalam que o município está atravessando mais uma de suas metamorfoses, saindo de uma era dedicada à produtividade e ao mercado financeiro para uma voltada para a diversão.
Ao mesmo tempo que os edifícios comerciais instalados em pontos centrais registram uma ocupação de cerca de 50% em comparação aos parâmetros anteriores à pandemia, Nova York recebeu em torno de 56 milhões de visitantes em 2022, segundo os autores. Para Glaeser e Ratti, esses dados demonstram a importância de a localidade abraçar essa modificação de vocação para a recreação e garantir que tanto turistas como residentes tenham motivos para irem até essas áreas.
Eles defendem também que para idealizar um lugar dinâmico o suficiente para competir com a conveniência da internet é preciso acabar com o zoneamento único e incentivar o desenvolvimento de bairros de renda e uso mistos, com bibliotecas, cinemas, escolas, escritórios, parques, restaurantes e bares próximos uns dos outros. Em uma cidade playground, descrevem Glaeser e Ratti, as comunidades mistas combinam moradia, trabalho e lazer gerando o que a escritora, jornalista e ativista social Jane Jacobs definia como o “balé das calçadas” – a movimentação de uma diversidade de usuários que estariam caminhando e entrando e saindo de estabelecimentos comerciais em diferentes horários do dia.
A trajetória de Nova York mostra como as novas tecnologias e processos produtivos moldaram as suas mudanças sociais, econômicas e urbanas, começando pelo crescimento ocasionado pelo porto, depois pelas ferrovias e nas últimas décadas pelo setor de serviços financeiros. E agora, afirmam os pesquisadores, é a vez dos empreendimentos de escritórios enfrentarem um desafio recente: os aplicativos que permitem fazer reuniões virtuais, como o Zoom. Além de possibilitar que os funcionários atuem de suas casas, essa ferramenta digital dá uma mobilidade maior aos cidadãos, com muitos deles indo viver em outros municípios. Entre 2020 e 2021, Nova York teve uma redução de mais de 300 mil habitantes, de acordo com Glaeser e Ratti.
Mesmo que os prédios comerciais mantenham unidades vazias, a necessidade dos indivíduos se reunirem nas localidades não desapareceu, argumentam os autores do artigo. O estudo efetuado por eles no MIT identificou que a vida social das pessoas se torna “estreita e homogênea” quando as interações ocorrem em salas de conversas virtuais. O trabalho remoto contínuo pode, na visão de Glaeser e Ratti, prejudicar a inovação e o desenvolvimento econômico, pois diminui o tecido urbano. Por isso, é preciso “encontrar novas oportunidades para se misturar no espaço físico”.
Embora Nova York, assim como tantas outras cidades, ainda esteja lutando para voltar ao ritmo pré-pandêmico, já há sinais de um retorno dos indivíduos às ruas, mesmo que uma boa parcela dos escritórios se mantenha vazia. Glaeser e Ratti ponderam que grande parte desse renascimento vem do turismo, que tinha uma demanda reprimida devido às restrições impostas pela pandemia. As visitas à metrópole aumentaram 71% entre 2021 e 2022 e a ocupação hoteleira superou os 90% em dezembro do ano passado, relatam os pesquisadores. Mas, para eles, é possível fazer mais para que os residentes também tenham interesse de se deslocarem até regiões centrais, sem ser para trabalhar.
Seis medidas para tornar as localidades mais vibrantes
O futuro das cidades e a sua migração para ambientes mais atrativos para seus moradores dependerá de iniciativas que auxiliem essa transição, indicam o economista Edward Glaeser e o arquiteto Carlo Ratti em artigo para o The New York Times. Ambos contribuíram com as estratégias apresentadas no “Novo Painel de Nova York”, ação lançada em 2022 pela governadora Kathy Hochul e pelo prefeito Eric Adams para debater políticas para recuperar os distritos comerciais do município, criar novas oportunidades econômicas para todos os seus habitantes e traçar os rumos da metrópole.
Os pesquisadores destacaram em seu artigo seis intervenções que podem contribuir para reviver os centros urbanos. A primeira delas envolve aprender com a experimentação e com o big data (conjunto diverso de dados). Conforme Glaeser e Ratti, medidas como investir em cultura, diminuir a regulamentação da recreação, qualificar o transporte público e fomentar o desenvolvimento residencial, por exemplo, devem ser melhoradas através da coleta de informações, de sua análise e ajustes. Outro ponto ressaltado é rever as restrições de zoneamento, permitindo uma maior flexibilidade para integrar a localidade e a conversão de escritórios em moradias.
Reinventar o núcleo dos prédios é mais uma sugestão deles, otimizando e reconfigurando as áreas comerciais para lugares que aliem trabalho e convivência e fujam da arquitetura convencional. Para os pesquisadores, esse arranjo auxiliaria também no enfrentamento da solidão. Animar as vias públicas é mais uma das iniciativas salientadas por Glaeser e Ratti. Nesse sentido, eles avaliam que para as cidades playground competirem com a internet e com sua gratificação instantânea é preciso levar a vida de volta para as ruas, como aconteceu durante a pandemia, com esses espaços fechados para os carros, bares e restaurantes com mesas nas calçadas e estímulo para as pessoas caminharem e pedalarem.
Liberar as vias nos finais de semana para os pedestres e ciclistas, realizar festivais e exposições temporárias ao ar livre, assim como organizar bazares de alimentos e lojas pop-up são alternativas para chamar mais cidadãos para as regiões centrais. Cinemas e concertos nos parques e praças são outras opções que ajudam a proporcionar uma experiência coletiva mais rica. Fáceis de serem executadas, essas atividades costumam ter uma grande repercussão e apoio do público.
Outra proposta dos pesquisadores abrange o comércio eletrônico, que facilita as compras dos usuários, mas afeta os negócios físicos, especialmente os pequenos que sustentam as economias locais e que movimentam as ruas. Para que as vias permaneçam dinâmicas, eles observam a necessidade de tributar de maneira justa o comércio online pelos engarrafamentos que eles provocam com suas entregas e reduzir os impostos sobre vendas no varejo, tornando o cenário mais competitivo. Por fim, Glaeser e Ratti reforçam a relevância da participação de todos os indivíduos na criação da cidade playground e que um município saudável propicia interações positivas entre pessoas de todos os níveis de renda, fornecendo áreas públicas e privadas acessíveis, bonitas e gratuitas ou de baixo custo, incluindo habitações abundantes e populares.
Desafios de planejar localidades que promovam a igualdade
Em seu artigo, Edward Glaeser e Carlo Ratti enfatizam que Nova York deve atrair “ricos e talentosos” e que a cidade precisa ser vista como uma “empresa de desenvolvimento imobiliário com fins lucrativos”, sob a responsabilidade da prefeitura (um órgão público), que deve atuar no combate à pobreza. Dessa forma, o governo se concentraria em manter o município interessante para aqueles com mais recursos e a receita gerada por eles seria revertida para escolas e apoio aos pobres. As declarações e princípios expostos por eles foram repercutidos em outros canais de comunicação e por outros profissionais.
Para o economista do Schwartz Center da New School (Nova York), Richard McGahey, o texto de Glaeser e Ratti reúne algumas ideias úteis, mas a análise deles “ignora problemas econômicos, estruturais e de equidade enfrentados pelas localidades que o conceito de ‘playground’ poderia piorar”, escreveu em artigo na revista Forbes. Segundo McGahey, há tempos Glaeser defende que os municípios sejam como centros de experiências para os ricos. Ele exemplifica lembrando do livro “Triumph of the City (Triunfo da Cidade)”, publicado em 2012 por Glaeser, que possui um capítulo sobre como regiões como Londres (Inglaterra) e Nova York são buscadas por indivíduos “qualificados” que “fornecem as ideias que alimentam a economia local” e que atender aos interesses dessas pessoas seria uma estratégia econômica viável.
A concepção de cidades playground, no entendimento de McGahey, não é algo novo, pois os municípios norte-americanos já estavam se encaminhando para essa transformação muito antes da pandemia, com a expansão dos “subúrbios ricos e brancos subsidiados pelo governo e instalados no entorno dos espaços centrais”. O também economista e presidente da Impresa, companhia especializada em avaliações econômicas regionais, inovação e clusters industriais, Joe Cortrigth, comenta em artigo do City Observatory que o conceito usado por Glaeser e Ratti é um eco do livro “The City as an Entertainment Machine (A Cidade como uma Máquina de Entretenimento)”, de Terry Nichols Clark, de 2003.
Cortrigth recorda que a obra, assim como o relatório “City Advantage (Vantagem da Cidade)”, elaborado em 2007 pelo City Observatory, assinalam que os indivíduos não vivem nas localidades somente para estar perto dos empregos, mas porque elas oferecem outros benefícios, como a socialização e o acesso a uma variedade de serviços, comércios e experiências. De acordo com ele, os municípios não são apenas playgrounds, são ambientes onde as pessoas podem crescer e levar uma vida mais interessante e plena. E é por isso que os centros urbanos irão resistir às dificuldades e renascerão, mesmo que a ocupação dos prédios de escritório não volte aos índices pré-pandêmicos.
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