Cidades Utópicas

O urbanista francês e um dos nomes atuais mais questionadores da maneira como as localidades são planejadas investigou os custos que lugares criados a partir de uma visão imposta de crescimento têm sobre o seu funcionamento e a qualidade de vida de seus residentes em relação a municípios desenvolvidos mais orientados ao mercado.

As cidades costumam ser comparadas a organismos vivos pela sua capacidade de evoluir e se adaptar às novas necessidades de seus habitantes e às mudanças sociais, econômicas e ambientais que ocorrem ao longo do tempo. No entanto, algumas localidades conseguem ser mais ágeis e menos engessadas em acompanhar essas transformações e responder às demandas, pois foram projetadas com uma proposta e regulamentações que permitem que elas cresçam dentro de um princípio de auto-organização em vez de um padrão pré-determinado ou de uma idealização utópica, como descreve o urbanista francês Alain Bertaud.

Com uma experiência de mais de 50 anos no planejamento de municípios, Bertaud – que atuou por cerca de 20 anos como urbanista-chefe do Banco Mundial e foi consultor em diversas cidades do planeta, como Nova York (EUA), Paris (França) e Bangkok (Tailândia) – analisou os principais efeitos de lugares concebidos utopicamente, que seriam aqueles que possuem um governo central ou local impondo como o seu desenvolvimento deve ser por meio de leis e restrições de atividades e usos do solo, na eficiência da estrutura urbana e no bem-estar dos indivíduos. O estudo foi publicado no periódico científico Paranoá, do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília,

Autor do livro “Ordem sem Design: Como os Mercados Moldam as Cidades”, lançado em 2018, e pesquisador sênior do Marron Institute of Urban Management e do Stern Urbanization Project, ambos da Universidade de Nova York (NYU), o urbanista defende em sua obra que os municípios devem ser projetados baseados em indicadores, com acessibilidade à moradia e à mobilidade e observando as necessidades do mercado para a criação de espaços dinâmicos e bem-sucedidos. Para Bertaud, o excesso de regras e proibições definidas pelo planejamento urbano têm um reflexo significativo no cenário contemporâneo das localidades, como detalha matéria do Somos Cidade – com seus problemas de déficit de imóveis, congestionamentos e poluição do ar.

Ele acredita também que os municípios funcionam melhor e conseguem evoluir naturalmente quando estão livres de normas como as de uso do solo e se deixam moldar pelas forças do mercado e pela movimentação espontânea da população. O escritor e consultor pondera ainda, em seu artigo, que um grande mercado de trabalho unificado é a razão de ser das metrópoles e aponta que a estrutura espacial de uma cidade é uma das causas possíveis da consolidação ou da fragmentação desses centros de empregos. Ele, contudo, enfatiza que os motivos para isso são muitos e que os fatores econômicos são, em geral, determinantes. O especialista ressalta que “se a infraestrutura não é razão suficiente para explicar o crescimento (de um lugar), a falta dela pode esclarecer a estagnação apesar das condições econômicas exógenas favoráveis”.

Em seu levantamento, Bertaud comparou três municípios considerados por ele como utópicos, Brasília (Brasil), Joanesburgo (África do Sul) e Moscou (Rússia), com outros 13 identificados pelo urbanista como mais orientados ao mercado para compreender os impactos das decisões sobre planejamento urbano em seus desempenhos. A dispersão dos residentes foi um dos principais custos para as localidades verificado pelo consultor. A expansão do território das cidades e, consequentemente, o maior tempo gasto para fazer os trajetos diários, foram outros efeitos apurados, assim como o aumento da rede de serviços – que precisa chegar a bairros cada vez mais distante dos centros que concentram o trabalho, comércio e opções de entretenimento – e a elevação das emissões de gases de efeito estufa.

A dispersão populacional, que foi um dos parâmetros utilizados – junto com a densidade – por Bertaud para avaliar os municípios em estudo, é a distância entre a habitação de uma pessoa e a principal área de emprego ou de consumo e lazer. Em sua pesquisa, o urbanista frisa que quanto menor for essa distância média por morador, melhor será o funcionamento das localidades. Ele reforça também que o seu artigo não é sobre desenho urbano e sim sobre a estrutura espacial dos lugares. Diante disso, ele lembra o exemplo de Paris, onde o administrador público Georges-Eugène Haussmann projetou os modelos das ruas da capital francesa no século XIX, da mesma forma que arquiteto e engenheiro civil Pierre Charles L’Enfant idealizou Washington D.C (EUA).

Esses profissionais, conforme Bertaud, determinaram as fronteiras entre a utilização privada e pública e atribuíram funções específicas ao espaço que era de todos, como ruas, avenidas, parques e edifícios e monumentos públicos, mas não decidiram onde os residentes iriam viver, os escritórios ficariam e a densidade dessas regiões. “As forças do mercado foram deixadas livres para preencher os grandes volumes alocados para o uso privado”, relatou. E isso, em sua opinião, tem possibilitado uma alteração contínua na utilização do solo e na densidade de construção, mantendo os projetos de Haussmann e L’Enfant.

Ele argumenta que em uma cidade moldada pela ideologia utópica, um planejador decide sobre as atividades e a intensidade de uso do solo que são autorizadas dentro dos ambientes privados. Além disso, nesses casos a auto-organização em princípio gerada pelos mercados não pode desempenhar o seu papel e não há um levantamento sobre os custos que as decisões urbanísticas terão futuramente, porque existe uma certeza de que a visão estabelecida pelos governos que trará benefícios relevantes para todos os seus habitantes.

Grande dispersão e densidades maiores longe dos centros urbanos: os pontos em comum entre Brasília, Joanesburgo e Moscou

A escolha dos três municípios estudados por Alain Bertaud foi baseada no critério de todos eles contarem com uma disposição espacial que reflete mais ideologia do que qualquer outra consideração prática ou econômica, escreveu o especialista em seu artigo. Apesar dessas localidades terem se desenvolvido em contextos distintos, com culturas, climas e sistemas econômicos diferentes, o consultor destaca que elas têm um grande valor para o índice de dispersão e um gradiente de densidade positivo – que cresce quando se afasta dos centros urbanos.

Cada uma dessas cidades, frisou ele, foram edificadas com ideologias distintas. Um planejamento influenciado pelo modernismo e pela visão de Le Corbusier, com a divisão rígida das funções – distanciando moradias do trabalho, serviços, comércio e lazer – e a priorização dos carros marcam a criação da capital do Brasil, de acordo com Bertaud. Já em Joanesburgo, explica ele, foi o Apartheid que definiu como seria a sua estrutura espacial, com a separação geográfica das pessoas por raça, com brancos residindo em casas erguidas pelo mercado e os negros vivendo em imóveis alugados que pertenciam ao Estado.

Na capital da Rússia, foi a visão dos diversos governos que moldaram a área urbana no século XX. O especialista descreve que três anéis foram erguidos em torno do núcleo histórico ao longo das décadas: um com indústrias pesadas, outro com prédios de apartamentos de quatro ou cinco andares e um cinturão habitacional de alta densidade nas regiões mais periféricas. Moscou foi edificada, segundo Bertaud, com um gradiente de densidade populacional positivo, como consequência do fato de, “na ausência de direitos de propriedade e de um mercado de revenda, ser impossível reciclar a terra uma vez construída”.

Para chegar aos resultados obtidos, o urbanista comparou os mesmos aspectos nos três municípios utópicos com os de outros 13 mais orientados ao mercado: Bangalore (Índia), Bangkok (Tailândia), Berlim (Alemanha), Budapeste (Hungria), Curitiba (Brasil), Hyderabad (Índia), Jacarta (Indonésia), Londres (Inglaterra), Los Angeles (EUA), Marselha (França), Nova York (EUA), Paris (França) e Portland (EUA). A seleção, salienta Bertaud, não foi aleatória, esses lugares foram eleitos de um banco de dados de 50 localidades pesquisadas por ele para o seu livro e possuem a mesma característica geográfica de Brasília, Joanesburgo e Moscou: estarem em terrenos planos, sem restrições topográficas importantes.

Em sua análise, o especialista constatou que as cidades concebidas utopicamente foram as únicas a apresentarem perfis de densidade erráticos, com esse indicador aumentando com a distância do centro. Já nos demais municípios, com exceção de Curitiba e Portland, aparecem variações nas densidades na parte central e na periferia, porém com uma particularidade em comum, que é a diminuição desse parâmetro com o afastamento do centro. Para Bertaud, isso mostra o impacto da auto-organização gerada pelos mercados, que é “claramente independente da cultura, do clima e da renda”.

Curitiba e Portland são casos à parte, aponta o urbanista, que as define como localidades “quase utópicas”, ficando no meio termo no quesito variações de densidade. Ele comenta ainda que na cidade dos Estados Unidos a densidade populacional é muito baixa em comparação com as demais. Outra conclusão do consultor é que apesar de Brasília ser duas vezes mais densa que Berlim, sua população é muito mais dispersa e, por isso, as viagens feitas por seus moradores muito mais longas. Já Moscou, é o município europeu mais denso da amostra e também o mais disperso.

A capital da Rússia é ainda a terceira localidade mais densa do levantamento e ocupa a mesma posição quando a dispersão populacional é verificada. Outra descoberta de Bertaud é que Brasília, que tem mais que o dobro da densidade de Los Angeles, é três vezes mais dispersa. Com base nessas informações, o especialista considera que a tentativa de “projetar ou remodelar uma cidade inteira por meio da regulamentação da terra tem efeitos colaterais imprevisíveis, como demonstram os exemplos deste artigo. Dada a resiliência temporal da forma urbana, é perigoso envolver-se em experimentos que podem moldar os municípios de maneira irreversível. As deseconomias criadas por ideologia em Brasília, Joanesburgo e Moscou vão persistir por muito tempo depois da rejeição dessas visões”, conclui.

A importância dos dados para definir políticas urbanas

Um aspecto essencial para o urbanista francês Alain Bertaud é a necessidade de indicadores para medir a eficiência das estratégias voltadas para o crescimento das localidades e reajustá-las periodicamente. Um exemplo citado pelo consultor, durante entrevista para a Startup Societies Foundation, foi o do tempo que os indivíduos perdem em suas viagens diárias. A partir de informações sobre como as pessoas fazem os seus deslocamentos e em que espaços eles são melhores ou piores atendidos pelos serviços de transporte coletivo, é possível repensar as ações urbanas e oferecer uma experiência mais qualificada nas cidades. “Tudo pode ser quantificado”, reforçou ele.

O urbanista sustentou ainda que para entender as mudanças pelas quais os indivíduos passam é preciso ter parâmetros precisos para saber, entre outros dados, o número de imóveis erguidos todos os anos em um lugar, onde essas unidades foram edificadas, quanto custam e o quão perto estão das oportunidades de trabalho, como destaca reportagem do Somos Cidade. “Esses índices devem ser avaliados e comparados a outras informações para que se possa decidir o que está errado e o que é certo fazer em relação à infraestrutura social, a de transporte e a densidade das áreas”, argumentou durante a entrevista.

Conforme Bertaud, os economistas analisam e identificam tendências do mercado, as quais refletem as prioridades das pessoas. “Deveria ser a demanda, o mercado, a nos dizer o tipo de habitação necessária em determinado local (se casas individuais ou arranha-céus) e não o urbanista ou o gestor público. Para poder ouvir e atender à população é preciso flexibilidade”, afirmou. O planejamento urbano dos municípios, na percepção do especialista, deveria ser voltado para a definição da infraestrutura de mobilidade, gestão de espaços públicos e proteção de paisagens naturais e do patrimônio histórico em vez de regular os detalhes, o que pode e não pode ser construído em terrenos privados. Uma administração das cidades mais dinâmica e que responda às demandas da população a partir de dados confiáveis é a proposta defendida por ele.

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