zoneamento

Menos oferta de residências e preços mais altos e expansão territorial são reflexos que as decisões sobre as localidades têm na vida de seus habitantes. Diversos municípios estão repensando suas normas para mitigar esses problemas, enfrentar a crise climática e melhorar o acesso da população a imóveis, oportunidades e serviços.

Afinal de contas, por que se fala tanto em zoneamento urbano e na sua revisão hoje em dia? Talvez muitos ainda não saibam, mas essa lei – em conjunto com outras, como os códigos de construção – define a configuração das cidades e tem um impacto significativo no dia a dia de todos, influenciado desde onde os indivíduos vão morar, os parques, espaços de lazer, escolas e comércios que existem por perto, como são feitos os deslocamentos até a proximidade de opções de trabalho. Por isso, as discussões sobre essas regras e as suas atualizações são tão importantes e vêm sendo estudadas e reforçadas por economista, planejadores urbanos e outros profissionais que analisam as localidades e os fatores que afetam o seu crescimento.

Para entender como as leis de uso e ocupação do solo causam efeitos no cotidiano das pessoas e no futuro dos municípios, é preciso conhecer os distintos aspectos que são regulamentados por elas. O zoneamento urbano, detalha artigo do instituto de pesquisa Brookings, sediado em Washington D.C. (EUA), divide o território das cidades em regiões chamadas de zonas e determinam o que pode ser edificado e aquilo que é proibido dentro de cada uma dessas áreas, bem como as atividades que podem ser exercidas nelas. A separação entre bairros residenciais, comerciais e industriais, tão comum nas localidades brasileiras, norte-americanas e de outros países, é uma consequência dessa visão de planejamento urbano.

Além disso, essas normas estabelecem limites para cada tipo de estrutura por zona, como, por exemplo, tamanho mínimo do lote – que é a menor quantidade de terra em que um empreendimento pode ser erguido –, altura máxima e os recuos que cada construção deve possuir (da calçada e dos terrenos no entorno). Da mesma forma, podem regrar sobre a quantidade de vagas de estacionamento fora da rua que deve ser incluída em propostas de novas casas ou escritórios, o paisagismo ou iluminação que deve integrar as edificações e até mesmo o tamanho e brilho das placas externas, acrescenta o Brookings.

Com as restrições impostas pelas leis de uso e ocupação do solo, uma série de reflexos pode ser sentida pela população, como menos habitações erguidas ao longo dos anos, elevação dos preços dos imóveis disponíveis e aumento das construções irregulares. Há também, na maioria das situações, um espraiamento dos territórios, já que os indivíduos buscam unidades em lugares com valores mais acessíveis. Movimentação essa que acaba subindo os custos dos municípios, que precisam levar infraestrutura e serviços até esses pontos mais distantes dos centros urbanos, e resulta ainda em uma maior dependência dos carros para a locomoção e em uma elevação das emissões de gases de efeito estufa.

O planejador urbano e diretor de pesquisa do Califórnia YIMBY (do inglês, Sim no Meu Jardim), Nolan Gray, afirma em seu livro “Linhas Arbitrárias: Como o Zoneamento Quebrou a Cidade Americana e como Consertá-lo”, lançado em 2022, que as normas de uso e ocupação do solo pressupõem “não apenas que os planejadores podem projetar as necessidades para cada tipo de moradia ou utilização comercial, mas também a escala em que tudo deve ser edificado e onde tudo deve ser erguido – e não somente para uma fatia da realidade, porém ao longo da vida útil de uma portaria de zoneamento, que muitas vezes pode se estender por mais de meio século”.

Gray argumenta, no trecho de sua obra em destaque no Strong Towns, que enquanto for encorajada nas pessoas a ideia de enxergar suas residências como um investimento e continuar sendo permitido que cada pequena localidade defina o que pode ser edificado e o que não é autorizado, as regras de uso e ocupação do solo “servirão para perpetuar a escassez de imóveis, a estagnação, a segregação e a expansão urbana. O objetivo de longo prazo deve ser a abolição do zoneamento”. O déficit habitacional e o incremento dos preços das propriedades e dos aluguéis nos Estados Unidos são algumas das razões que têm motivado diferentes municípios e estados daquela nação a repensarem as restrições de zoneamento. Um cenário que se repete em outros países e contextos.

Em artigo para o The Atlantic, o planejador urbano relatou que os aluguéis dispararam nos Estados Unidos – somente em 2021, o valor das casas havia aumentado cerca de 20%, conforme ele –, assim como houve um crescimento no número de pessoas sem-teto. Um levantamento da revista Fortune apontava que a Califórnia abrigava em torno de 22% da população que vive na rua naquele país, consequência, entre outros elementos, do encarecimento das unidades e da carência de políticas públicas nesse segmento.

Um relatório de acessibilidade à moradia do segundo trimestre de 2024 do Gabinete de Análise do Legislativo do estado californiano assinala que os custos das residências na região são há muito tempo mais altos do que a média dos Estados Unidos e vêm elevando-se nos últimos anos. Os preços dos imóveis de nível médio da Califórnia são, de acordo com o documento, mais que o dobro dos valores de habitações do mesmo tipo naquela nação.

Estudo avalia impacto das restrições de uso do solo no preço das moradias no Recife

Com uma paisagem urbana marcada pela presença de rios e praias, a capital de Pernambuco viu, como outras localidades, algumas de suas áreas apresentarem um intenso incremento em sua densidade populacional e a implementação de estratégias para ordenar essa expansão. Levantamento efetuado por pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) investigou como a Lei dos Doze Bairros da Cidade do Recife, criada em 2001, afetou o valor das propriedades. A política impôs restrições à altura das construções nas comunidades de Graças, Espinheiro, Aflitos, Parnamirim, Tamarineira, Jaqueira, Monteiro, Santana, Casa Forte, Poço da Panela, Derby e Apipucos.

Entre 1991 e 2000, esses bairros tiveram um aumento médio da densidade demográfica de quase o dobro do verificado para a média dos demais espaços do município. Esse crescimento, segundo os autores do estudo, é explicado pelo fato desses lugares contarem com uma infraestrutura mais qualificada, de maior valor do ambiente urbano. A motivação para o estabelecimento das limitações da norma, descrevem os pesquisadores, foi a necessidade de preservação do acervo arquitetônico dessas regiões e das suas áreas verdes e a minimização dos problemas associados geralmente ao adensamento, como barulho, congestionamento e poluição.

Diante disso, a regra tinha como objetivos a requalificação do espaço urbano coletivo, condicionamento do uso e da ocupação do solo à oferta de infraestrutura instalada, à tipologia arquitetônica e à paisagem urbana existente e proteção de ambientes naturais e com valor histórico, cultural e paisagístico. Para alcançar essas metas, a lei impôs limites de altura de 12, 36 e 60 metros, sendo o menor deles relacionado à região que margeia o Rio Capibaribe, o intermediário aos lugares de preservação da arquitetura tradicional das comunidades e o maior índice para as áreas próximas ao Centro que não margeiam o Capibaribe.

Para a análise, foram averiguados dados da base do Imposto Sobre Transmissão de Bens e Imóveis (ITBI) da prefeitura da cidade de mais de 42 mil unidades instaladas nos bairros abrangidos pela lei e em outros fora deles, entre 2000 e 2012. O material coletado reunia também informações sobre as características das residências, como número de andares dos prédios, quantidade de apartamentos de cada empreendimento, área edificada e padrão de construção. Os autores ressaltam ainda que, por se tratar de dados associados a impostos, o seu alcance é restrito ao mercado formal de habitações, o que tende a representar de maneira inadequada a situação para a população de renda mais baixa.

Com base nas informações apuradas, eles descobriram que a Lei dos Doze Bairros levou ao incremento dos preços das moradias nas regiões com restrições de edificação e que os seus efeitos se elevaram com o passar do tempo. Eles salientaram que nesses espaços o valor das propriedades subiu aproximadamente seis pontos percentuais a mais que nas demais comunidades do Recife no primeiro ano (2002) e foi cerca de dez pontos percentuais mais alto no quarto ano de vigência da norma (2005). Além disso, os pesquisadores ponderaram que esses aumentos são consistentes com a pouca disponibilidade de locais com infraestrutura qualificada no município e relativamente bem situados em relação ao centro, que concentra parte relevante das ocupações, serviços e amenidades do município, como estar perto do Capibaribe do verde da paisagem urbana.

Outra conclusão deles foi que o reflexo da política, aliado ao crescimento do preço dos imóveis dentro dos 12 bairros, representou um ganho de riqueza para os seus donos, que tinham uma renda relativamente mais alta para o padrão do Recife. Com isso, observam eles, a intervenção urbana desencadeada pela regra, “a despeito do caráter preservacionista da qualidade de vida dos residentes já instalados na área sob restrição e, provavelmente, da beleza paisagística da cidade, parece ter tido efeito regressivo sobre a distribuição de riqueza entre os seus habitantes”.

Reformas no zoneamento podem ajudar localidades enfrentarem problemas atuais e futuros

Da maneira como foram determinadas até agora, muitas das leis de uso e ocupação do solo criaram obstáculos para uma grande parte da população, que enfrenta dificuldades para encontrar moradias nos lugares mais estruturados e próximos a oportunidades de emprego, lazer e comércios e gastam mais tempo para fazer os seus percursos. Levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), efetuado em 2023, revela que 36% dos brasileiros perdem mais de uma hora por dia no trânsito. O estudo, que ouviu 2.019 indivíduos de municípios com mais de 250 mil residentes, mostra que 21% da população gastam entre 1 e 2 horas se deslocando para realizar atividades de rotina, como trabalho e estudo, 7% de 2 e 3 horas por dia e 8% mais de 3 horas.

Atualizar o zoneamento urbano pode diminuir essas barreiras e contribuir para que as cidades alcancem metas de resiliência, sustentabilidade, saúde e equidade, aponta matéria da revista Urban Land, publicação do Urban Land Institute. Recente relatório do instituto traz insights e exemplos que podem auxiliar as localidades que estão promovendo modificações em suas normas de uso e ocupação do solo e procurando novas formas de pensar os municípios e soluções para elevar a oferta de imóveis, incentivar o desenvolvimento de baixo carbono, idealizar ambientes mais caminháveis e se preparar para os impactos das mudanças climáticas.

Entre os benefícios que essas alterações podem ter, conforme o Urban Land Institute, estão a maior produção de uma variedade de tipos de unidades, incrementando também a disponibilidade de propriedades acessíveis, redução do custo do desenvolvimento habitacional por meio da diminuição ou fim dos obstáculos políticos e fomento a alternativas de mobilidade urbana, estimulando que mais pessoas caminhem, pedalem e utilizem o transporte coletivo em vez de automóveis. Isso pode ser concretizado, de acordo com a pesquisa, através do apoio à concepção de bairros compactos e de uso misto.

A instituição afirma ainda que para promover atualizações significativas no zoneamento urbano é necessário que as diversas partes interessadas no processo trabalhem juntas, incluindo líderes das cidades, membros e grupos da comunidade, incorporadores imobiliários e organizações sem fins lucrativos. Comenta também que essas modificações na lei podem tornar o desenvolvimento imobiliário mais fácil e ampliar o leque de quem pode participar desse mercado, possibilitando o envolvimento de incorporadores de pequena escala e indivíduos de comunidades carentes.

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