Indivíduos que usam o mesmo ambiente, como um parque ou um café de bairro, estabelecem, involuntariamente, um lugar. Esses estranhos que parecem familiares encontrados nas atividades do dia a dia geram uma sensação de estar em casa em áreas públicas, uma movimentação que o geógrafo David Seamon chamou de Place Ballet – noção que ajuda a compreender a relevância dos locais e do seu planejamento para ter municípios dinâmicos.
“Todo dia ela faz tudo sempre igual”, o verso cantado por Chico Buarque na música Cotidiano traduz bem a rotina que faz parte da vida. Ao realizar as tarefas diárias, sejam elas trabalhar, sair para almoçar ou estudar ou caminhar com o cachorro, as pessoas acabam passando pelas mesmas ruas, praças, comércios e espaços públicos e cruzando com outros indivíduos que seguem seus próprios roteiros. Essa interação de rotinas de estranhos que parecem familiares em um ambiente específico cria um balé do lugar (place ballet), termo definido pelo geógrafo, fenomenólogo, professor e escritor norte-americano David Seamon.
O conceito foi apresentado por Seamon, que é um dos principais nomes da geografia humanista, em seu livro “Uma geografia do mundo da vida”, lançado pela primeira vez em 1979 e reeditado em 2016. Ele defende que as pessoas que se reúnem em um mesmo espaço, devido aos seus hábitos, mesmo sem se conhecerem, estabelecem um senso de lugar, uma área que se torna única para elas e na qual se sentem parte de uma comunidade e onde têm uma sensação de estar em casa em ambientes coletivos. O geógrafo afirma ainda que essas rotinas e costumes cotidianos podem transformar os espaços. Os vendedores de um mercado de bairro e seus clientes costumeiros são um dos exemplos de balé do lugar dado pelo professor da Universidade Estadual do Kansas (EUA), assim como os frequentadores de um parque que se reconhecem, mesmo que nunca tenham conversado.
Pesquisador da fenomenologia arquitetônica e do design ambiental na criação de lugares, o Seamon busca entender a relação entre o ser humano e as áreas urbanas. Segundo ele, o desenho das vias públicas e das varandas dos prédios, assim como outras decisões de planejamento das regiões, pode fortalecer ou enfraquecer a integração e a coordenação do balé do lugar de um espaço. Baseado nas ideias do professor, foi desenvolvido um estudo na Holanda para compreender o significado dos encontros entre idosos que visitavam o parque Amandelpark, em Eindhoven.
O levantamento acompanhou 21 participantes, com idades entre 62 e 94 anos, em suas atividades rotineiras, que iam de passeios com os cachorros, prática de exercícios até levar os netos no playground. O parque, por ser um destino popular e um ponto de passagem, é procurado para as caminhadas diárias, o que eleva a probabilidade dos idosos se encontrarem no balé do lugar. A partir das entrevistas feitas, os pesquisadores identificaram que, como esses indivíduos fazem os mesmos percursos praticamente todos os dias, os idosos cumprimentam os demais usuários do ambiente, falam sobre amenidades, como o tempo, e sentem falta quando alguém que está sempre nessa área não aparece.
Para os autores do estudo, esse balé de interações entre desconhecidos familiares gera gentileza e cooperação entre os integrantes dessa comunidade que se forma devido a criação de lugar. Esses encontros possibilitam a união de pessoas que de outra maneira não se conheceriam e colaboram na definição e manutenção de um senso de pertencimento. E para que isso aconteça é necessário que as localidades ofereçam aos seus moradores espaços qualificados, onde essas trocas e contatos possam ocorrer de forma espontânea.
A metáfora do balé para falar sobre os diferentes movimentos e ritmos dos bairros e de seus residentes e usuários já foi usada pela escritora e ativista Jane Jacobs, em seu livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”. A obra da jornalista foi analisada por Seamon em um artigo para o jornal Mediapolis, focado em temas relativos aos municípios e à cultura, em que ele aborda a visão de Jane sobre as localidades a partir dos princípios da fenomenologia (corrente filosófica que se transformou em uma das bases mais importantes da geografia humanística, que valoriza a percepção e interpretação individuais dos lugares). Ele assinala que a escritora utilizou a observação como ponto de partida para verificar os elementos e as estruturas gerais que tornam as cidades no que elas são essencialmente: “ambientes animados e florescentes, marcados pela vida exuberante nas ruas e calçadas”.
Para Jane, um município alia uma “intrincada rede viva de relacionamentos… composta por uma variedade enormemente rica de pessoas e de atividades”. Seamon acrescenta que o “que somos, seres vivos, pensantes e experimentadores, é inseparável dos lugares que frequentamos” e daquilo que há nesses espaços e dos indivíduos que passam por eles. Assim como Seamon, a escritora acredita que bairros pulsantes despertam em seus usuários um forte apego e um sentimento de pertencimento. O fluxo diário de pessoas circulando por calçadas que reúnem uma grande diversidade de negócios e de funções para satisfazerem suas necessidades, responsabilidades e outras tarefas é chamado por Jane de balé da rua.
Quatro qualidades ambientais fundamentais que sustentam o balé da rua foram percebidas por ela: quarteirões curtos, concentração densa de indivíduos, multiplicidade de tipos de construção e atividades-âncoras: como habitação e opções de trabalho em um mesmo local. Em conjunto essas características trazem, de acordo com a escritora, vitalidade para as comunidades e movimentação de pessoas em todos os horários do dia.
Seamon aponta também que nesse balé descrito por Jane as ações e os comportamentos cotidianos e habituais dos indivíduos que se misturam regularmente em um espaço transformam essa área em uma outra com uma dinâmica e caráter únicos – o que o geógrafo veio a nomear mais tarde como balé do lugar. Ele reforça que a principal responsabilidade do planejamento e do design das cidades deve ser desenvolver – na medida em que a política e as iniciativas governamentais permitam – municípios que sejam agradáveis para essa diversidade de planos, ideias e oportunidades florescerem, junto com as empresas públicas.
Fatores-chave contribuem para a idealização de ambientes vibrantes
Essencial para possibilitar as interações sociais e o sentimento de pertencer a uma comunidade, a concepção dos espaços urbanos deve levar em consideração distintos aspectos para que eles sejam utilizados pelas pessoas. O Project for Public Spaces (PPS) possui um manual que agrega uma série de itens que devem ser ponderados na hora de desenhar ruas, bairros e localidades. Entre os pontos destacados pela entidade está o de criar um lugar e não um design. Ou seja, planejar uma área que seja acolhedora e confortável para os seus frequentadores, com mobiliário urbano, iluminação e paisagismo, assim como pensar as funções que serão efetuadas no entorno, como varejo e atividades que acontecem nessa região, determinando diferentes usos para um mesmo destino.
Outras sugestões do PPS são procurar parceiros para viabilizar as melhorias de um ambiente, como museus, escolas e instituições ali presentes, e aprender com os acertos e erros de outros espaços. Observar o que as pessoas gostam e o que não funciona em outros lugares é uma maneira de entender o que está faltando na área. Esse deve ser um cuidado contínuo, possibilitando adequar o local às novas demandas que surgirem. Começar de maneira simples e gradual é mais uma recomendação, disponibilizando primeiro pontos para sentar, cafés ao ar livre, arte urbana, jardins e segurança para os pedestres caminharem.
Os ambientes públicos moldam os laços comunitários nos bairros, salienta matéria do TheCityFix, que enfatiza também que eles são espaços de encontro e podem facilitar as interações e trocas de ideias. Além disso, esses lugares, quando bem-feitos, trazem benefícios físicos e mentais para os indivíduos, que se sentem melhor e tendem a ser mais ativos quando contam com regiões atrativas. Ainda conforme a publicação, um bom local é aquele que reflete a diversidade e estimula as pessoas a conviverem sem esforço, oportunizando condições para que elas permaneçam nessas áreas e convidem mais cidadãos a estarem na rua.
O desenvolvimento de ambientes qualificados, relata o TheCityFix, envolve elementos como misturar os usos, unindo moradia, comércio, escritórios, bares, restaurantes, instituições de ensino e saúde e opções de lazer em um mesmo bairro – estratégia que eleva a segurança do espaço e o deixa mais amigável a grupos variados de indivíduos. Fachadas ativas é outro fator fundamental para ter lugares que despertam nas pessoas a vontade de estarem naquelas áreas. Para isso, é preciso aperfeiçoar a conexão entre a via pública, a calçada e o térreo dos edifícios, deixando as regiões mais interessantes.
A mobilidade de todos é mais um item a ser pensado no momento de idealizar ambientes pulsantes, com espaço para pedestres, ciclistas, motoristas, para quem utiliza o transporte coletivo e para aqueles que possuem alguma dificuldade de movimentação. A presença de lugares verdes é outro ponto fundamental para atrair os indivíduos para atividades ao ar livre e humanizar os municípios. Além disso, a disponibilidade de áreas com vegetação colabora para melhorar a qualidade do ar, diminui as altas temperaturas e auxilia na drenagem urbana e na conservação da biodiversidade. A publicação frisa que a dinâmica social e a cultura do local devem ser avaliadas durante o processo de concepção de um ambiente para que esse espaço gere conexões com os seus usuários.
Placemaking: envolver a comunidade é importante para criar lugares que funcionem
Projetar áreas pensando em quem irá usá-las é a proposta do placemaking, uma abordagem multidisciplinar de planejamento, desenho urbano, arquitetura e gestão que promove a participação das pessoas na elaboração das regiões que serão frequentadas por elas. Para o TheCityFix, esse envolvimento é essencial para manter a qualidade desses ambientes e assegurar que a natureza e as funções desses espaços irão responder às múltiplas demandas da comunidade. Ações de distintas escalas podem ser concretizadas por meio do placemaking, seja no setor privado ou no público.
Uma praça, uma rua e até mesmo um bairro inteiro podem ser concebidos dentro desse conceito, ouvindo os indivíduos e suas necessidades ao longo de todo o processo de desenvolvimento. Ter as pessoas como o centro dos empreendimentos não é uma ideia recente, revela artigo do Project for Public Spaces (PPS). O placemaking, que pode ser traduzido como fazer lugares, passou a ser mais difundido na segunda metade da década de 1990 pelo PPS – organização sem fins lucrativos fundada em 1975. Porém, antes disso, essa visão de que as cidades precisam ser locais vivos e atrativos já era propagada por pensadores como Jane Jacobs e William “Holly” Whyte, nos anos 1960.
Ainda segundo a entidade, o placemaking é uma metodologia adaptável, colaborativa, sociável e inclusiva, que deve abranger os diferentes públicos que serão atendidos pela área que está sendo elaborada. O objetivo de utilizar esse método é idealizar novos destinos nos municípios, que proporcionem identificação e o sentimento de comunidade. O Bryant Park em Nova York, e o programa Village Building Convergence, em Portland, que motiva os residentes a colaborarem na evolução de seus bairros, compartilhando materiais de construção e plantas doadas para criar lugares em diversas escalas, são alguns exemplos do emprego dessa abordagem nos Estados Unidos, reunidas pelo Smart Cities Dive. No Brasil, a Cidade Pedra Branca, em Palhoça (SC), é uma referência em aplicação de placemaking, como ressalta reportagem do Metrópoles.
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