Habitação em crise

Seja no setor público ou privado, há diversas oportunidades para quem deseja trabalhar com o desenvolvimento dos municípios. Para detalhar em que áreas podem atuar, os impactos e as habilidades procuradas nos planejadores urbanos de hoje, o Somos Cidade conversou com profissionais com ampla experiência nesse segmento.

As localidades não param de crescer e receber novos residentes. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que em 2050 a população mundial deve chegar próxima a 10 bilhões de pessoas, a maioria delas vivendo em ambientes urbanos (68%). Preparar os municípios para essa nova realidade, promover a qualidade de vida de seus habitantes, aliando moradia com mobilidade, segurança e lazer, enfrentar a crise climática e ainda trazer os indivíduos para discutir em conjunto as questões da cidade, são alguns dos desafios que se apresentam para os planejadores urbanos.

Atuando nas esferas públicas ou privadas ou na interface entre esses dois campos, os profissionais que querem estabelecer uma carreira na área precisam estar conectados às necessidades contemporâneas das localidades, que são lugares complexos, em constante movimento e muito especializados em termos de usos, pessoas e trabalho, enfatiza a arquiteta e urbanista e sócia-fundadora e diretora do Instituto Cidades Responsivas, Luciana Fonseca. Doutora em Planejamento Urbano, ela ressalta que aqueles que escolhem esse setor têm que olhar os municípios por meio de indicadores e compreender que as localidades possuem um desenho dinâmico e que uma lógica apenas normativa não funciona mais.

Luciana comenta que o planejador se acostumou a desenvolver as cidades a partir de uma métrica mais modernista, que era extremamente zoneada e difundida em cima de uma série de regras. “Eles (os profissionais) devem entender que atualmente um plano diretor mais consistente e alinhado com o contemporâneo dá subsídios para que os municípios sejam propositivos”, defende a diretora. Nesse sentido, agentes públicos, privados, a sociedade civil organizada e a academia podem fazer proposições para as localidades e elaborar, em termos de dispositivos de controle, as taxas de ocupação, de aproveitamento, altura e recuos. “Simplificar isso ao máximo pode parametrizar o desenvolvimento”, afirma. 

Já a engenheira civil e fundadora e CEO da Biossplena, Giovana Ulian, acrescenta que planejar hoje é estar preparado para os diferentes futuros que podem se apresentar e não ter na mão o “bastão da certeza”. “O planejador moderno, que aprendeu com a pandemia, ele traz esse conceito de fragilidade”, reforça. Giovana, que também é doutora em Urbanismo e já foi secretária de Planejamento de Flores da Cunha (RS), explica que a ideia de fragilidade, de antifrágil, é uma evolução da resiliência e que os profissionais que incorporam esse princípio compreendem que as mudanças fazem parte de um projeto e têm mais flexibilidade para enfrentar as alterações que ocorrem ao longo das iniciativas – alguns empreendimentos imobiliários podem levar mais de 20 anos para serem concretizados. “Quanto mais o planejador do futuro consegue lidar com as incertezas, mais hábil ele é”, assinala. 

A secretária de Urbanismo de Campinas (SP), Carolina Baracat Lazinho, agrega que o planejamento urbano interfere tanto no bem-estar dos indivíduos como nas relações entre eles através da criação de espaços públicos, como praças e parques, e que ainda tem a função de explorar o potencial das cidades para atrair empregos e investimentos. Avaliar a vocação dos municípios – se é para o turismo, prestação de serviços ou para a indústria – e idealizar como o planejamento urbano pode incentivar essa característica é outra possibilidade que a profissão oferece, aponta. “A partir dessa identificação, podem ser definidas as diretrizes e ordenamentos de uso e ocupação do solo, trazendo todos os atores envolvidos nesse assunto para se ter uma visão geral da localidade”, pontua Carolina, que é arquiteta e urbanista e mestre em Gestão Ambiental.

Trabalhar em equipes multidisciplinares é uma das particularidades da carreira de planejador urbano destacada pelas entrevistadas. Além de arquitetos, urbanistas e engenheiros, podem atuar nos distintos segmentos desse campo de conhecimento administradores, advogados, geógrafos, sociólogos e designers, por exemplo. Na esfera pública, eles podem estar nas secretarias de planejamento e urbanismo, analisando as potencialidades das regiões e o que dá certo e o que não funciona, concebendo projetos de leis, traçando o layout das cidades, revisando diretrizes e planos diretores ou se aprofundando sobre a dinâmica urbana para propor novos usos nos bairros, descreve a secretária. 

“O planejador deve entender também que a introdução de uma atividade em uma zona, por meio de uma modificação na lei, traz efeitos na vida do lugar e das pessoas que precisam ser verificados. Com um diagnóstico em campo, é possível constatar se a legislação está adequada para aquela área e se ela cumpre com os objetivos previstos”, pondera Carolina. A partir dessas informações podem ser efetuados os ajustes necessários para impulsionar a região. Ela frisa ainda que fazem parte das funções dos profissionais a avaliação das propriedades onde serão construídos novos bairros, o acompanhamento do crescimento desse espaço e o desenho das ligações com o restante do município.

A essas atribuições juntam-se, conforme a secretária, a averiguação dos reflexos ambientais, se o empreendimento não está na curva de ruído de aeroportos, a responsabilidade na aprovação do alvará de novos complexos e seguir a sua execução. Cabe a esse profissional também melhorar as localidades, requalificar as zonas centrais, revitalizar ruas e pensar o paisagismo de espaços públicos. 

 

Oportunidades no setor privado e na sua interlocução com a esfera pública

O contexto é positivo para os interessados em trabalhar com planejamento urbano, com uma grande demanda do mercado em vários segmentos. A gestão de projetos, adianta a CEO da Biossplena, Giovana Ulian, é uma das áreas que possuem boas possibilidades para os profissionais focarem suas carreiras. As empresas e governos, segundo ela, estão cada vez mais setorizados e precisam de indivíduos que tenham uma visão transversal, sistêmica, que enxerguem que todos os elementos de uma iniciativa juntos são mais importantes do que eles separados. 

Na esfera privada, os planejadores urbanos podem atuar em escritórios desenvolvendo projetos, seja na parte de conceito do empreendimento, desenho, viabilidade econômica ou na condução de cenários futuros. A diretora do Instituto Cidades Responsivas, Luciana Fonseca, lembra também que as pessoas podem trabalhar com a criação de bairros planejados, com a sua extensão e conexões com os demais lugares do município, bem como em institutos de pesquisa elaborando indicadores para monitorar o crescimento urbano, por exemplo. “São profissionais com o olhar mais voltado para a macro escala de desenvolvimento das localidades”, observa. 

Outra oportunidade para os planejadores urbanos está em companhias que fazem projetos para os setores público e privado. Luciana conta que enquanto idealiza, em sua empresa, uma iniciativa na área pública, que leva mais tempo para ser efetuada e ver os resultados, ela vai realizando outras para companhias privadas, que têm um impacto na cidade em um tempo mais curto – como consultoria e desenho de projetos. Os profissionais podem ainda, de acordo com ela, atuar especificamente com as contrapartidas exigidas para empreendimentos que tenham efeitos ambientais. Um ponto sublinhado pelas entrevistadas é que as pessoas que trabalham no segmento privado têm que atuar juntamente com a dimensão pública. 

Giovana complementa que para as iniciativas privadas contribuírem na qualificação dos municípios é necessário conhecer a região onde elas serão implementadas, o que existe ali e quem são os indivíduos que já estavam nesse espaço. “Para fazer essa conversa com o coletivo, não pode ser o ente privado batendo na porta de casa em casa, precisa de um player que faça esse papel e que diga: vamos nos organizar e melhorar nossa área, conceber um layout de fachadas para todo mundo seguir, fazer calçadas parecidas”, detalha. 

Ela salienta que esse agente seria como uma versão 4.0 das associações de bairro, configurando-se como outra possibilidade de atividade para os planejadores urbanos. A CEO da Biossplena revela que no trabalho que faz de regeneração urbana, de ver a localidade que se tem, essa é uma tendência, um movimento que ela percebe acontecendo dentro do Brasil. “Está todo mundo olhando para dentro de suas cidades. E um ator que falta (nesse processo) não é da prefeitura ou das empresas, ele é representante do coletivo”, enfatiza.

 

Quais são as habilidades procuradas em planejadores urbanos e como está a sua formação?

Diplomático, articulador, saber conversar e escutar e ser livre de preconceitos foram algumas das principais características faladas pelas entrevistadas quando questionadas sobre as habilidades que um profissional de planejamento urbano deve ter. A secretária de Urbanismo de Campinas, Carolina Baracat Lazinho, adiciona ainda o gosto por legislação urbanística, códigos de obras e planos diretores. “Envolve também conhecimento em direito urbanístico, política habitacional, saneamento, entre outros. É alguém que consegue atuar de forma integrada”, diz. Saber onde buscar recursos nos governos federal e estadual e entender as diretrizes que norteiam o desenvolvimento do País em diferentes setores são outras particularidades necessárias. 

Além de flexibilidade e de lidar com as mudanças que ocorrem durante a execução de um projeto, a CEO da Biossplena, Giovana Ulian, ressalta que o planejador urbano deve gostar de pessoas e compreender comportamentos – o que para ela é fundamental para se ter municípios melhores. “Ainda se produz localidades para pobre e para rico, cidades que segregam os indivíduos. E os programas de habitação social que possuímos desde sempre, eles pioram os municípios, pois resolvem o problema da moradia, mas criam outras 50 dificuldades sociais”, afirma. 

Ela explica que isso ocorre porque a decisão sobre onde edificar as residências populares está muito pautada pelo preço dos terrenos, o que acaba afastando as pessoas para as extremidades dos municípios, onde há menos infraestrutura. “Acho que o planejador urbano deve segurar na mão a bandeira de uma localidade para todos misturados e não para todos segmentados”, considera. 

A diretora do Instituto Cidades Responsivas, Luciana Fonseca, reforça que é essencial idealizar um planejamento onde a gestão seja protagonista. Um dos maiores desafios dos profissionais desse campo, conforme ela, é a sensibilização desses indivíduos, deles entenderem que o que nos trouxe até aqui não nos leva adiante. “Compreender que não dá para copiar e colar (regulamentações), que não é mais um modelo de zoneamento amplamente restritivo que vai funcionar. A dimensão jurídica está estudando novos modelos, leis e figuras de legislação que possam auxiliar na confecção de planos diretores mais dinâmicos”, assinala. 

Nesse panorama, Luciana comenta que aqueles que vão trabalhar no setor de planejamento precisam ter conhecimento em tecnologia, saber, minimamente, o que softwares e linguagens podem fazer por seus projetos e montar equipes que estejam aptas a operar com esses instrumentos, assim como é importante que eles entendam como lidar com dados para alcançar um desenho dinâmico para os municípios. “Estamos na era do Big Data, da transformação digital informacional. Essa é a nossa revolução. O novo sempre vem e o que a gente teve não funciona mais”, argumenta.

Sobre a formação acadêmica dos planejadores urbanos, Carolina pontua que as faculdades dão uma noção básica sobre o tema, mas que muitos profissionais acabam necessitando de cursos complementares sobre leis. Já Giovana vê como muito ruim a preparação para atuar na área. Ela acredita que ainda se está vivendo a onda do pós-pandemia, com muita gente concluindo as graduações agora que não conseguiu estagiar ou que não tem uma visão geral, que conecta todos os aspectos de um planejamento. 

“As formações hoje estão sendo conduzidas, muitas vezes, por professores sem experiência prática, o que é uma grande fragilidade dos cursos”, aponta Giovana. A CEO da Biossplena agrega que, quando essas pessoas chegam ao mercado, em alguns casos, há pouca disponibilidade dos recém-formados para viver situações difíceis. “Eles querem as coisas muito mastigadas”, acrescenta. 

 

Como o planejamento urbano pode contribuir para reduzir os reflexos da crise climática?

As recentes enchentes e queimadas no Brasil e em outros países salientam a urgência de medidas para mitigar os impactos de eventos climáticos, que vêm se tornando cada vez mais frequentes. Segundo a diretora do Instituto Cidades Responsivas, Luciana Fonseca, é possível fazer isso por meio de sistemas preditivos. “Já temos conhecimento para isso”, defende. Ela destaca também que é preciso alocar recursos expressivos para essa questão, mesmo que não seja para uso cotidiano, mas para que eles possam ser acessados quando houver demanda. 

“Trabalhar com um cenário preditivo requer tecnologia. (Em casos de inundações como a que aconteceu no Rio Grande do Sul no ano passado), é necessário ter um sistema de engenharia, comportas, diques e bombas funcionando, a cidade esponja, drenagem, habitações em zonas de leito de rios com composição morfológica preparada para isso, ou seja, com o térreo liberado para que as pessoas não sejam atingidas”, cita. A diretora sustenta que não existe uma única solução para enfrentar situações como essa, o que há é um sistema de respostas. 

A secretária de Urbanismo de Campinas, Carolina Baracat Lazinho, pondera que o planejador urbano possui o papel de fazer a localidade ser responsiva, cumprindo o que determina a lei, pensando em permeabilidade do solo, drenagem, caixas de retenção, definição de regiões de preservação ambiental e fiscalizando. “Esses profissionais devem estar antenados em soluções orientadas pela natureza, em instalar calçadas e telhados verdes e liberar a presença de equipamentos de energia solar”, exemplifica. O planejador precisa estar atento a esses itens, de acordo com ela, para poder exigir esses elementos nos projetos e, com isso, diminuir as emissões de gases de efeito estufa, assim como dar incentivos fiscais ou urbanísticos para a eficiência energética. 

Por sua vez, a CEO da Biossplena, Giovana Ulian, conta que a união dos indivíduos, com a formação de redes para o enfrentamento dos reflexos dos eventos climáticos, como as enchentes, foi um grande aprendizado e que, no pós-pandemia, a maior inovação que se pode fazer para os municípios é gerar comunidade. “E comunidade percebida como as diversas teias que devem se formar para a gente viver melhor, se apoiar, empreender e trocar capacidade de trabalho. As cidades, especialmente as com mais de 50, 60 mil moradores, deveriam começar a induzir o seu planejamento urbano para o policentrismo”, adianta. 

Ela descreve que ter minicidades dentro dos municípios irá facilitar a vida dos seus residentes, abrigando em um mesmo lugar emprego, habitação, lazer, escolas, ambientes públicos. “Esse para mim é o caminho, a Cidade de 15 Minutos. Para conseguir isso, o planejador urbano é fundamental”, observa. Luciana compartilha que dedicou a sua carreira a esse campo de conhecimento e que é necessário ter uma vocação, um propósito, muito latente para atuar nessa área. “A gente trabalha com a dor e a delícia de lidar com o sistema urbano. Às vezes é difícil, mais é muito recompensador”, revela. Já Carolina frisa que é empolgante ver como é possível alterar a dinâmica de uma localidade através do planejamento urbano. “Sou apaixonada por urbanismo, é uma carreira que vale a pena ser seguida”, conclui.

Seja o primeiro a receber as próximas novidades!

    Não fazemos SPAM. Você pode solicitar a remoção do seu email a qualquer tempo.