Mobilidade Urbana: Os estacionamentos gratuitos incentivam o uso do automóvel, custam caro para as cidades e as tornam menos amigáveis aos pedestres
“Quanto mais vagas para carros nas ruas, mais pessoas são influenciadas a utilizar esse meio de transporte para se locomover. Apesar da afirmação ser um consenso entre muitos especialistas que debatem o futuro da mobilidade nos municípios, ela ainda gera questionamentos e oposição de gestores urbanos e de uma parcela da população acostumada a usar seus veículos para todo o tipo de viagem, inclusive as de curta distância. O estímulo à opção pelos automóveis muda não somente a maneira como os indivíduos se deslocam, mas também o desenho das cidades, reforça matéria do portal de notícias Vox no YouTube. Além do espaço que ocupam nas vias, que poderia ser melhor aproveitado para o desenvolvimento de calçadas, ciclovias e do transporte coletivo, os estacionamentos públicos gratuitos ou com má-precificação trazem impactos sociais, ambientais e econômicos para as localidades.
Estimativas apresentadas pela reportagem apontam que nos Estados Unidos existem oito vagas para cada carro. Reunidas, elas abrangeriam cerca de 30% dos municípios norte-americanos, o equivalente ao estado inteiro de West Virginia. Um exemplo brasileiro do extenso território destinado aos veículos é a capital paulista, que possui aproximadamente 5 milhões de metros quadrados de área pública – algo como o tamanho de três parques do Ibirapuera – para “estocar” automóveis privados, apurou a pesquisa “A Cidade Estacionada”, publicada em 2020 pelo economista João Melhado.
“Quando você tem pessoas dirigindo em busca de estacionamento, isso aumenta o congestionamento do tráfego e as emissões de carbono”, acrescenta o economista e professor de planejamento urbano da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), Donald Shoup, em texto no site da Vox. Esse cenário eleva ainda a quantidade de acidentes de trânsito, uma vez que os condutores tendem a ficar mais distraídos enquanto procuram uma vaga e podem não perceber a aproximação de pedestres ou ciclistas.
Shoup, que é autor do livro “The High Cost of Free Parking” (O alto custo do estacionamento gratuito, lançado em 2005), calculou que em uma região de 15 quarteirões de Westwood Village, Los Angeles (Califórnia), os motoristas percorrem em torno de 950 mil milhas anualmente (mais de 1,5 milhão de quilômetros) apenas para conseguir um lugar para deixar seus carros. Essa circulação, projetou ele, consome 47 mil galões de gasolina (177,9 mil litros) e emite 730 toneladas de gás carbônico ao ano. Outro dado verificado pelo economista a partir da análise das áreas centrais de várias cidades dos Estados Unidos é que 34% dos condutores em movimento procuram por uma vaga e demoram, em média, 7,5 minutos para encontrá-la, como destaca artigo de João Melhado e Paulo Speroni no site Caos Planejado.
Conhecido por defender a cobrança pela utilização dos estacionamentos nas ruas de qualquer local que tenha mais cidadãos com automóveis do que vagas para eles pararem, Shoup questionou na entrevista para a Vox por que se paga por tudo que envolva os veículos – o próprio carro, o combustível, os pneus e o seguro –, mas com os espaços para estacionar deveria ser diferente. A matéria lembra também que, mesmo que a maioria das vagas nas vias não contem com parquímetros, os estacionamentos não são de graça. Há por trás deles todo um custo com a aquisição dos terrenos, a pavimentação, a manutenção e outros serviços que são garantidos pelos governos municipais ou estaduais por meio dos impostos pagos por todos – incluindo quem não possui automóvel.
Cada vaga para veículo na rua nos Estados Unidos custa em torno de 1.750 dólares para construir e 400 dólares por ano para a sua conservação, relata a reportagem. “Esse estacionamento não surgiu do nada. Então, isso significa que as pessoas que não têm carros pagam pelas vagas usadas por outras. Cada vez que você caminha para algum lugar ou anda de bicicleta ou pega um ônibus, você é prejudicado”, ressalta Shoup. Uma das soluções indicadas por ele para os municípios onde atua como consultor é cobrar o preço certo pelos estacionamentos nas vias e utilizar esses recursos em benefícios para os cidadãos. Em Ventura (Califórnia), comenta o economista, a receita obtida foi convertida em wi-fi gratuito e iluminação pública.
Suas ideias já inspiraram muitas localidades norte-americanas a adotarem alternativas mais inteligentes para a cobrança das vagas para automóveis, como a por demanda, em que o sistema altera o valor da tarifa de acordo com a busca por uma região em distintos horários. São Francisco (Califórnia), com o SFPark, é um exemplo de ações que vêm trazendo bons resultados – detalhamos mais essa iniciativa na matéria Estacionamentos inteligentes: novos desafios para melhorar o uso dos meios-fios nas cidades que publicamos no portal do Somos Cidade.
Shoup defende, ainda, que as leis que determinam requisitos mínimos de garagens para novas edificações devam ser revisadas, pois há casos em quem há mais área para os veículos do que para as construções em si. No canal da Vox no YouTube, ele salienta que essas normas levam os desenvolvedores a investirem em empreendimentos menos densos e com muitos espaços para os carros, retroalimentando o uso desse tipo de transporte.
Má-precificação dos estacionamentos incentiva utilização privada de áreas públicas
A cobrança pelas vagas para automóveis nas ruas é vista por João Melhado e Paulo Speroni, no artigo para o site Caos Planejado, como fundamental para diminuir as “distorções ambientais e socioeconômicas que a gratuidade causa”. Conforme eles, sem essa medida, estimula-se o uso dos veículos como transporte individual, “aumentando a desigualdade, a poluição, o trânsito e o número de acidentes, além de prejudicar o comércio local”. O texto traz dados levantados por Melhado em seu estudo “A Cidade Estacionada”, no qual analisou a gestão do meio-fio e da Zona Azul de São Paulo, e amplia o debate e a comparação entre a evolução dos valores cobrados nos estacionamentos nas vias e a nas tarifas do transporte coletivo para outras capitais brasileiras.
Para eles, é um erro classificar a política sobre vagas públicas como o “patinho feio” da mobilidade urbana em relação a outros temas em discussão, como os pedágios urbanos ou novas linhas de metrô. Entre as razões para essa consideração está o fato da grande área ocupada pelos veículos nas ruas, lugares esses que poderiam ser voltados para a qualificação dos passeios, a criação de faixas exclusivas de ônibus, ciclovias e outras iniciativas com viés coletivo. “Quando destinamos tanto espaço para o carro, quem perde são as pessoas, que se espremem em calçadas inadequadas e levam mais tempo para se locomover em transporte coletivo”, assinalam. Outro ponto importante enfatizado pelos autores é a distorção que eles observam na percepção dos cidadãos sobre os estacionamentos nas vias serem um “bem público” e que, por isso, não deveriam ser cobrados.
No entanto, como a ocupação da vaga é apenas para os motoristas, Melhado e Speroni argumentam que ocorre, de fato, uma utilização excludente do chamado “bem público”, que só pode ser usado por um indivíduo de cada vez. “Resumindo, trata-se de um exemplo fidedigno de privatização do espaço público”, ponderam. Informações da pesquisa Origem-Destino de 2017 do Metrô paulista revelam que cerca de 25% das viagens diárias em São Paulo são realizadas em automóveis privados. Índice que fica ainda menor entre as classes mais pobres (em torno de 10%) e bem mais elevada entre os mais ricos (aproximadamente 55%). Diante desses números, os autores frisam que “o carro é um bem de luxo e, quando as prefeituras subprecificam o estacionamento público, (elas) privilegiam a camada mais rica da população, aumentando a desigualdade (social)”.
Quem também sai perdendo com a má-precificação das vagas é o comércio de rua que não vê, apesar da grande parcela de seus empreendedores defenderem a construção de mais estacionamentos em frente aos seus negócios para potencializá-los, a oferta de novos lugares para os veículos se refletir em mais clientes motorizados. Recentes estudos mostram que a maioria das compras são feitas por pedestres, ciclistas ou por aqueles que se locomovem de transporte coletivo. O artigo exemplifica que na região do Brooklyn (Nova York) os consumidores que vão até os estabelecimentos de automóvel representam menos de 10% das vendas. Essa porcentagem cai ainda mais quando o contexto analisado é o de São Francisco (Califórnia), com 6%.
Assim como o economista e planejador urbano Donald Shoup, Melhado e Speroni alertam que os recursos que os municípios obteriam com a cobrança correta das vagas públicas poderiam ser empregados para incentivar a mobilidade ativa (caminhar e pedalar) e coletiva (ônibus, metrô e trem). Em “Cidade Estacionada”, Melhado verificou que na capital paulista seria possível arrecadar três vezes mais do que atualmente (com a Zona Azul), que totaliza um montante de R$ 100 milhões por ano (dado de 2020).
Maioria das capitais brasileiras têm tarifas mais caras no transporte público que nos estacionamentos nas ruas
Com 70% das grandes cidades do País cobrando pelas vagas públicas para veículos (seja via concessão do serviço à iniciativa privada ou diretamente pelas prefeituras), a proporção estacionamentos pagos é pequena quando comparada com o total de espaços disponíveis nos municípios para esse fim. De acordo com a pesquisa de João Melhado e Paulo Speroni, há em São Paulo 44 mil pontos para estacionar tarifados, 39 mil no Rio de Janeiro e menos de 5 mil em Porto Alegre. Lisboa (Portugal), citam eles, que é menor que essas localidades, possui aproximadamente 100 mil vagas pagas.
Além da baixa oferta, os autores verificaram que a média dos preços cobrados nos estacionamentos públicos nas 27 capitais avaliadas é de R$ 1,74 pela primeira hora de utilização. Em São Paulo, esse valor pode chegar até R$ 5,00. Eles apuraram ainda que oito dessas cidades não contam com qualquer tipo de tarifação – quatro delas na região Norte, três no Nordeste e uma no Centro-Oeste. Já em relação ao valor da passagem no transporte coletivo, foi identificado que somente Rio de Janeiro e São Paulo cobram mais pelas vagas nas vias urbanas do que por uma viagem de ônibus, a diferença, contudo, é bastante pequena: inferior R$ 0,50. “Ou seja, considerando os custos das tarifas de ida e volta em transporte público comparado ao preço para estacionar um carro, é muito mais barato tirar o automóvel da garagem (para quem tem um)”, afirmam.
Nas capitais investigadas, com exceção de São Paulo e Rio de Janeiro, os usuários de ônibus pagam, em média, R$ 3,99 pela passagem. Segundo o estudo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Curitiba são as localidades com as tarifas de ônibus mais caras do Brasil. Já as mais baratas são as de Recife e Brasília, sendo a diferença entre os preços do transporte coletivo e dos estacionamentos mais próximos na capital de Pernambuco (em torno de R$ 3,50 e R$ 3,00, respectivamente) e bem maior em Brasília (cerca de R$ 3,50 e R$ 2,00).
A partir dos dados averiguados, Melhado e Speroni propõem algumas ações práticas que podem auxiliar na gestão do meio-fio dos municípios e no uso mais coletivo do atual espaço ocupado pelos veículos nas cidades. Entre as iniciativas, eles sugerem que as prefeituras repensem a utilização das áreas hoje voltadas para estacionamentos públicos, com o desenvolvimento de calçadas mais largas e seguras, faixas exclusivas para ônibus e bicicletas, locais para lazer e comércio, como parklets e foodtrucks, e lugares para embarque e desembarque de pessoas e de cargas. Precificação dinâmica das vagas, baseada na demanda em determinadas vias em diferentes horários, aprimoramento da fiscalização por meio da tecnologia e destinação dos recursos arrecadados para políticas de mobilidade ativa e coletiva complementam as recomendações feitas pelos autores.
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