Houston, a cidade do Texas, uma das mais populosas dos Estados Unidos, adota uma regulamentação do solo baseada na avaliação dos impactos dos empreendimentos em suas vizinhanças e não mais na separação dos territórios em áreas residenciais, comerciais e industriais.
Mais conhecida por abrigar o Centro Espacial da Nasa, Houston (Texas) tem também chamado a atenção por ser o único grande município dos Estados Unidos a acabar com o zoneamento por usos. Em vez de projetar a localidade de forma estática, definindo onde moradias, negócios, serviços e complexos industriais podem se estabelecer, a cidade de mais de 2,3 milhões de habitantes possui um conjunto de regras e leis que analisa o impacto que novos empreendimentos podem causar à população, considerando desde ruídos e poluição ambiental e luminosa aos riscos de incêndio e de inundação, para aprovar ou não as propostas.
Com seus acertos e erros, Houston vem mostrando que é possível pensar em outras formas de desenhar as cidades, minimizando os problemas já conhecidos da divisão dos territórios por usos e das restrições às edificações, como falta de vitalidade dos espaços, espraiamento dos municípios, desenvolvimento urbano que prioriza a utilização de carros e escassez de imóveis. “Houston sem zoneamento funciona muito bem”, defende o planejador urbano e especialista em regulação do uso do solo, M. Nolan Gray, em artigo para a revista Fast Company. A quarta mais populosa localidade dos Estados Unidos constrói mais residências que Nova York e San José (Califórnia), em um ritmo de quase três vezes a taxa per capita desses lugares, detalha Gray.
Esse movimento contínuo de erguer moradias, desencadeado em parte pelo fim do zoneamento, tem ajudado o município texano a se manter como um dos mais acessíveis do país, “oferecendo aos recém-chegados aluguéis modestos, mesmo em meio a uma demanda aparentemente interminável”, afirma o planejador urbano e autor do livro “Arbitrary Lines: How Zoning Broke the American City and How to Fix It (Linhas Arbitrárias: como o zoneamento quebrou a cidade americana e como consertá-la)”. Ainda segundo Gray, esse cenário atrai uma mistura de norte-americanos da classe média e trabalhadora e imigrantes em busca de oportunidades, tornando a localidade uma das mais diversas dos Estados Unidos.
No entanto, o especialista reforça que Houston, assim como outros municípios que fazem parte do Cinturão do Sol (região que abrange estados do Sul e Sudoeste do país e que tiveram, nos últimos anos, um grande crescimento econômico e demográfico), enfrenta dificuldades ligadas à segregação e à expansão do território para longe dos pontos centrais e da oferta de empregos e das opções de lazer e serviços. Porém, “seu sucesso como uma das cidades mais acessíveis e prósperas dos Estados Unidos revela a viabilidade – na verdade, a conveniência – do não zoneamento”, assinala Gray, que é doutorando em planejamento urbano na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Outro diferencial de Houston em relação aos outros municípios do país refere-se à participação dos habitantes no debate sobre a regulamentação do solo, aponta o especialista. Conforme Gray, por três vezes – em 1946, 1962 e 1993 –, os eleitores locais foram envolvidos na decisão sobre o zoneamento. E, em todas as ocasiões, eles votaram contra a separação das áreas pelo tipo de atividade que ocorrem nelas. O que o código de desenvolvimento da cidade determina é que “nenhuma parcela de terra é restrita a qualquer uso específico e, em muitos casos, também não há limites de densidade ou altura (dos prédios)”, explica o planejador urbano e ex-diretor do Kinder Institute of Urban Research da Rice University, em Houston, e ex-prefeito de Ventura (Califórnia), William Fulton, em artigo para a American Planning Association.
O que a experiência no município texano vem demonstrando é que medir o impacto de um empreendimento em sua vizinhança é mais importante que definir os usos para a zona de uma localidade, argumenta o empresário do setor imobiliário e turístico e coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante. “Dividir as cidades por usos é coisa do passado. Apesar disso, nossos planos diretores seguem adotando esse mecanismo para regrar os espaços urbanos”, destaca. Ele comenta que Houston permite que se construa o que quiser, onde quiser, desde que o projeto esteja dentro dos parâmetros estabelecidos pelo poder púbico. “O Brasil deveria olhar para esses exemplos para segui-los”, salienta.
Sem zoneamento, mas com planejamento urbano e muitas normas
Apesar de ser geralmente identificada como o município sem zoneamento, a cidade de Houston é composta por uma mistura de políticas, regras, decretos e táticas de bairro, como descreve William Fulton no texto para o American Planning Association. De acordo com ele, a cidade está repleta de “planos, estratégias e outros esforços para criar mais acessibilidade, trazer novos investimentos para comunidades historicamente carentes e proteger a localidade contra futuras inundações e outros perigos”. Em 2017, a região foi atingida pelo furacão Harvey, que deixou 68 mortos e mais de 120 bilhões de dólares em prejuízos e levou a prefeitura a expandir a infraestrutura de gestão das águas pluviais e a controlar o desenvolvimento das áreas de inundação, lembra M. Nolan Gray em artigo para a Bloomberg.
Já Fulton enfatiza que em Houston o que chegou ao fim foi o zoneamento de usos, mas que a maioria de seus habitantes entende que ela não é totalmente sem regulamentos. Ele cita como exemplo os bairros mais ricos do município que contam com restrições de escrituras, que são limitações de utilização do solo em terrenos privados, que podem impedir o comércio dentro de zonas residenciais. “É por isso que River Oaks, a comunidade mais abastada da localidade, não possui edifícios de apartamentos ou escritórios no meio do bairro (eles ficam no perímetro)”, frisa.
As restrições de escritura de Houston, complementa Gray em seu artigo para a Fast Company, “são acordos privados e voluntários entre proprietários, determinando como eles podem ou não utilizar os seus lotes”. Esses documentos estão vinculados à escritura das terras e os seus donos devem concordar com as suas normas como condição da venda. Esse instrumento, assim como os zoneamentos, demarca uma área específica que precisa seguir uma série de regras de uso do solo e é empregado pelo governo municipal para, principalmente, sustentar o valor das casas e manter a qualidade de vida do lugar, esclarece o planejador urbano.
No entanto, Gray pondera que mesmo que tenham semelhanças, o sistema de restrições de escrituras é uma melhoria em comparação ao zoneamento. Isso porque o primeiro mecanismo cobre, segundo ele, somente um quarto da cidade, em locais destinados, em sua maioria, para moradias unifamiliares isoladas. Já as regiões industriais, corredores comerciais, comunidades mistas e multifamiliares e greenfields ainda a serem desenvolvidos não são abrangidos por essa medida. Dessa maneira, cerca de três quartos de Houston ficam livres para crescerem sem os impedimentos de algo parecido com um zoneamento, avalia o especialista em regulação do uso do solo.
O município também tem outras ferramentas para orientar a sua evolução, como a liberação de densidades mais altas em algumas áreas, definição de zonas de reinvestimento de incremento de imposto (um instrumento que possibilita que comunidades retenham a receita do tributo predial para ser reaplicado nesses lugares) e a possibilidade de residentes se reunirem para estabelecerem um bairro histórico, garantindo certas limitações de construção. Fulton, no artigo para a American Planning Association, lista ainda que foram adotadas normas para a edificação ao redor dos três aeroportos da cidade e que o tamanho dos lotes, que é determinado pelo governo, pode ser alterado por meio de uma votação dos habitantes e da aprovação do conselho.
Gray recorda que Houston conta com uma lei de ruído severa e uma preocupação especial com usos de terra que ofereçam riscos de incêndio, bem como com atividades que gerem odores indesejados. “O desenvolvimento da várzea – que pode agravar as inundações – é rigorosamente regulamentado”, pontua. Já para segmentos produtivos de maior impacto, como matadouros e poços de petróleo, há especificações sobre a distância mínima que as moradias devem ficar desses empreendimentos, adianta o planejador urbano.
Lugares caminháveis e fim das exigências de estacionamento são desafios para o futuro de Houston
Mesmo não possuindo um zoneamento tradicional por usos, a localidade texana possui ainda um código de planejamento urbano extenso e complicado de ser administrado, opina Willian Fulton no artigo para a American Planning Association, com leis que continuam a estabelecer, por exemplo, recuos para as construções e requisitos de vagas para veículos em diversos bairros, com exceção para regiões como a central. Apesar disso, Fulton se surpreende como o município funciona bem. “É uma cidade grande e dinâmica que não parece muito diferente de Los Angeles ou Dallas”, analisa.
Assim como as localidades vão se transformando e novas demandas surgem, Houston tem buscado alterar regras urbanísticas para melhorar os espaços para as pessoas e alcançar metas de redução de impacto ambiental. Conforme M. Nolan Gray, em texto para a Bloomberg, a cidade é uma das maiores emissoras per capita de gases de efeito estufa nos Estados Unidos e possui uma das mais altas taxas de uso de carros, mas vem trabalhando em um plano para reverter esse panorama. Entre as ações propostas nesse sentido, ele ressalta a eletrificação da frota de Houston, a adoção de fontes renováveis e a qualificação da eficiência energética dos prédios.
Contudo, uma das medidas mais inovadoras, na visão do planejador urbano, é a reformulação das políticas para eliminar as exigências mínimas de estacionamento até 2030. No município, esses requisitos podem representar até duas vagas para automóveis para cada apartamento edificado ou quatro lugares para cada mil metros quadrados de área de um escritório, informa Gray. A obrigatoriedade de disponibilizar estacionamentos para os veículos pode aumentar o custo de um apartamento em até 34 mil dólares e incentiva a utilização de carros em qualquer deslocamento, afirma o especialista em regulação de uso do solo.
“Várias localidades já eliminaram essas exigências, como Buffalo (Nova York), Hartford (Connecticut) e São Francisco (Califórnia). E, em 2019, a própria Houston mudou (a lei) para incrementar o número de bairros isentos dos requisitos mínimos de estacionamento”, acrescenta Gray. De acordo com ele, o projeto também solicita aos formuladores de políticas que apoiem o preenchimento, com o estímulo à criação de lugares caminháveis – permitindo a construção de habitações médias (como duplex e triplex) e aperfeiçoando calçadas e ciclovias. Além disso, defende o emprego da estratégia TOD (Desenvolvimento Orientado para o Transporte, da sigla em inglês), que prevê o adensamento no entorno de estações de trem, metrô e ônibus e o fomento de novas centralidades.
Com o crescimento da população e do número de indivíduos vivendo nos espaços urbanos, repensar a maneira como as cidades são planejadas é fundamental para o futuro dos municípios e de seus moradores. Além do fim do zoneamento por usos, outras visões urbanísticas têm sido colocadas em práticas, como o zoneamento por performance. Em vez de separar as regiões por residencial, comercial e industrial, são definidos padrões e metas que devem ser cumpridos pelos empreendimentos, priorizando objetivos econômicos, sociais e de habitação. Entre os seus benefícios estão maior flexibilidade para a liberação de novas edificações e de modificações necessárias nas comunidades, mais agilidade na aprovação de projetos e maior desenvolvimento dos bairros.
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