Diferentes estudos demonstram que as normas de uso e ocupação do solo afetam a oferta de imóveis, promovem o espraiamento das localidades e a segregação por renda e tornam o acesso às oportunidades de trabalho mais complexo, levando municípios a repensarem suas legislações.
Com oito bilhões de pessoas no mundo, índice alcançado em novembro deste ano, segundo projeções da Organização das Nações Unidas (ONU), temas como a crise habitacional, desigualdade, expansão das cidades e segregação racial e de renda ganham ainda mais relevância nos debates sobre políticas públicas e planejamento urbano das localidades. Reavaliar as regras de zoneamento dos municípios, reduzindo as restrições que impedem a construção de mais residências, é um dos caminhos para enfrentar esse cenário apontado por diversas pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos.
O zoneamento é um conjunto de normas que regula o uso e a ocupação do solo, assim como as atividades que podem ser efetuadas em determinadas partes das cidades. Difundindo intensamente a partir da segunda metade do século 20, esse instrumento para pensar as localidades é adotado por um grande número de países e visto por muitos especialistas em economia e planejamento como um dos principais responsáveis pelo déficit de moradias e pela elevação dos valores dos imóveis para compra e locação. Nos Estados Unidos, por exemplo, somente em 2021 o preço das casas teve um incremento de cerca de 20%, ressalta o planejador urbano e diretor de Pesquisa do Califórnia YIMBY (movimento Sim no Meu Jardim, favorável à edificação de empreendimentos nos bairros), M. Nolan Gray, em artigo da revista The Atlantic.
Gray, que é autor do livro “Arbitrary Lines: How Zonening Broke the American City and How to Fix It (Linhas Arbitrárias: Como o Zoneamento Quebrou a Cidade Americana e como Corrigi-lo)”, lançado em junho de 2022, acrescenta que, também no ano passado, os aluguéis dispararam, ligando o alerta para um possível aumento da população sem-teto nos municípios norte-americanos. Além disso, ele observa que a falta de habitações, antes concentrada nas regiões costeiras, está se espalhando pelo interior dos Estados Unidos. Para o diretor de Pesquisa do Califórnia YIMBY, os requisitos mínimos de estacionamentos em novos complexos, a proibição de erguer prédios de apartamentos em algumas comunidades e os códigos de limite de altura, recuos dos edifícios e proporções de área construída impedem o desenvolvimento da maioria dos bairros residenciais.
Estudo feito pelos economistas Chang-Tai Hsieh e Enrico Moretti sobre a distribuição dos trabalhadores nas localidades norte-americanas, “Housing Constraints and Spatial Misallocation (Restrições de Moradia e Má alocação Espacial)”, estimou uma perda anual de salários associada ao zoneamento em torno de 1,6 trilhão de dólares. Hsieh e Moretti projetaram ainda que as restrições de uso do solo diminuíram o crescimento econômico da nação em 36% entre 1964 e 2009 e que o relaxamento das regras em Nova York, São Francisco e San José (ambos na Califórnia) teria elevado o PIB agregado de 2009 dos Estados Unidos em 9%. Em seu artigo, Gray atualiza esses dados para a realidade de 2020 e destaca que isso significaria que o zoneamento de apenas três cidades custa para a economia do país aproximadamente 2 trilhões de dólares ao ano.
Baseada em dados de 220 regiões metropolitanas, a pesquisa de Hsieh e Moretti analisa como o acesso às oportunidades de emprego nos municípios de maior produtividade é dificultado devido à escassez de ofertas de novos imóveis e que essa carência é resultado das rígidas leis de uso do solo. Os economistas afirmam que, em vez de aumentar as vagas de trabalho locais, o desenvolvimento das cidades com barreiras para erguer habitações eleva os preços das unidades. Essa situação reduz o crescimento do país e a qualidade de vida das pessoas.
Eles recordam também que os municípios costeiros dos Estados Unidos passaram por uma revolução nos direitos de propriedade, que teve início na década de 1960, o que impactou fortemente a reserva de residências. Conforme o estudo, nos últimos 25 anos, o setor da construção lida com enormes desafios para concretizar seus projetos, enfrentando a oposição de movimentos criados por moradores com forte influência sobre as decisões das prefeituras (como os grupos de NIMBYs, Não no Meu Quintal). “Donos de imóveis em localidades de alta produtividade têm um incentivo privado para restringir a disponibilidade de habitações. Ao fazer isso, esses eleitores limitam de fato o número de indivíduos que podem viver nos lugares com os melhores empregos. Isso diminui a renda e o bem-estar dos trabalhadores”, pontuam os pesquisadores.
Para Hsieh e Moretti, uma maneira de minimizar os efeitos negativos do zoneamento seria os governos federal ou estaduais reduzirem o poder das cidades de definir os critérios de uso do solo. Eles acreditam ainda que os reflexos dessas normas, como menor oferta de residências, valores mais altos das moradias e menos chance de acesso aos empregos, atingem não só a área com regras mais rígidas como também as cidades do entorno.
Regulamentos afetam a mobilidade e saúde das famílias e afastam as pessoas das regiões centrais
As consequências da manutenção das leis de zoneamento urbano tais como são hoje levaram os governos de Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden a defenderem a reforma dos requisitos de uso do solo, como salienta o diretor de Pesquisa do Califórnia YIMBY, M. Nolan Gray. O presidente Biden, inclusive, incluiu em seu programa de investimentos a meta de aumentar expressivamente o estoque de imóveis através de iniciativas como o incentivo para que os municípios e estados norte-americanos acabem com os seus zoneamentos, como fez a Califórnia em 2021, detalha matéria do portal Somos Cidade.
Além da diminuição da quantidade de habitações, essas normas impactam a saúde, a produtividade econômica e até mesmo o comportamento dos indivíduos avalia o estudo “Do Strict Land Use Regulations Make Metropolitan Areas More Segregated by Income? (Regulamentos Rígidos de Uso da Terra Tornam as Áreas Metropolitanas mais Segregadas por Renda)”, dos professores de Planejamento Urbano da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), Michael C. Lens e Paavo Monkkonen. De acordo com os pesquisadores, a segregação de renda nas regiões metropolitanas dos Estados Unidos cresceu nas últimas quatro décadas, excluindo famílias de menor poder aquisitivo de bairros mais ricos e com infraestrutura mais qualificada.
Umas das descobertas de Lens e Monkkonen, que investigaram 95 dos maiores lugares do país, foi que quanto mais intensa for a pressão das prefeituras e de grupos de residentes para regular o uso do solo maiores são as taxas de segregação de renda. Por outro lado, quando há mais controle dos estados esses índices são menores. Nesse ponto, o levantamento se alinha ao feito por Hsieh e Moretti, reforçando que as decisões sobre zoneamento não podem ficar concentradas “nas mãos de atores locais”. Outro ponto verificado pelos professores é que as restrições de densidade são responsáveis pela fragmentação social das áreas metropolitanas e que devem ser relaxadas sempre que possível.
Esse panorama produz efeitos também na mobilidade das pessoas e no afastamento das famílias de menor renda dos centros urbanos, como pontua o estudo “Urban Growth and Its Aggregate Implications (Crescimento Urbano e suas Implicações Agregadas)”, dos economistas Gilles Duranton e Diego Puga. Eles apuraram que dentro de cada cidade os “preços das casas reduzem gradativamente conforme a distância das regiões centrais para compensar os custos com deslocamentos, que se tornam mais elevados”. Ao se debruçar sobre o desenvolvimento dos municípios, os economistas concluíram que os locais mais populosos tendem a contar com moradias mais caras no Centro, assim como se estendem por distâncias maiores, espraiando o seu território e empurrando os cidadãos para as periferias.
Seria o fim do zoneamento urbano a solução para reverter a falta de imóveis?
Apesar de grande parte das pesquisas retratar o contexto dos Estados Unidos, as mesmas condições de escassez de habitações e valores elevados decorrentes das regras de uso do solo são registradas por outras nações, entre elas o Brasil. O estudo “O impacto das leis de zoneamento no mercado imobiliário: evidências de um País em desenvolvimento”, dos economistas Ricardo Carvalho de Andrade Lima e Raul da Mota Silveira Neto, feito dentro do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostra um incremento médio no preço dos aluguéis de 5,4% a 6,3% no Brasil (dados de 2013, ano de publicação do levantamento).
Lima e Silveira Neto relatam ainda que as regulamentações de uso do solo favorecem o crescimento do segmento informal de moradias e a formação de favelas, com as famílias de baixa renda migrando para esse tipo de casa, perdendo bem-estar em razão da precariedade da infraestrutura desses bairros. Os economistas ponderam que as políticas públicas voltadas para financiar imóveis populares também precisam considerar o grau de restrições do zoneamento nos municípios, com as áreas com maiores limitações sendo mais atendidas por essas estratégias para compensar os reflexos negativos das normas de uso e ocupação da terra.
O diretor de Pesquisa do Califórnia YIMBY, M. Nolan Gray, enfatiza no artigo para a revista The Atlantic que o zoneamento urbano não funcionou e que é necessário encontrar outros sistemas para planejar as cidades. Ele cita Minneapolis (Minnesota) e Hartford (Connecticut) como exemplos de lugares onde grupos de YIMBY conseguiram abolir as regras de uso do solo. Já a Califórnia acabou com o zoneamento unifamiliar em quase todo seu território em 2021 e restringiu a capacidade dos governos locais de proibir a construção de apartamentos.
A experiência de Houston (Texas), frisa Gray, revela que outras formas de pensar o municípios são possíveis. Entre as grandes cidades, Houston é a única dos Estados Unidos a acabar com o zoneamento por usos e condicionar a aprovação de novas edificação aos incômodos que elas podem trazer para as pessoas, como ruídos, poluição ambiental e luminosa, riscos de incêndio, entre outros. De acordo com o integrante do Califórnia YIMBY, com essas alterações a localidade atualmente ergue residências 14 vezes mais que lugares como San José. “Em 2019, o município texano construiu o mesmo número de apartamentos que Los Angeles, apesar de ter metade da sua dimensão”, compara.
Desde que as reformas nas normas de tamanho mínimo do lote foram implementadas, em 1998, mais de 25 mil habitações foram criadas, a maioria delas em áreas urbanas que já existiam. “O fato de Houston ser agora uma das cidades mais acessíveis e diversificadas do país não é por acaso”, sustenta Gray. Ele acrescenta que os problemas relacionados às moradias subsidiadas, proteção de ambientes naturais e mapeamento de ruas e parques seguros estão sendo resolvidos pela localidade em um ritmo mais acelerado que a maioria dos municípios norte-americanos.
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