Municípios cortados por largas vias que privilegiam a circulação dos automóveis, casas que ficam longe do trabalho e do lazer e ruas que não estimulam o convívio social. Esses são alguns dos efeitos da influência do modernismo no desenho das localidades sentidos até hoje.
Municípios cortados por largas vias que privilegiam a circulação dos automóveis, casas que ficam longe do trabalho e do lazer e ruas que não estimulam o convívio social. Esses são alguns dos efeitos da influência do modernismo no desenho das localidades sentidos até hoje.
Máquinas que funcionavam perfeitamente, assim eram vistas as cidades na concepção do modernismo, movimento que teve o seu apogeu entre as décadas de 1930 e 1960 e marcou a forma de idealizar e utilizar os espaços urbanos. Em um contexto de crescimento populacional e em uma tentativa de ordenar e padronizar o desenvolvimento dos municípios, essa escola urbanística estabeleceu princípios que trazem reflexos negativos até os dias atuais para os ambientes e seus usuários, tirando o protagonismo das pessoas no planejamento das localidades e o dinamismo das vias públicas.
A separação rígida entre moradia, emprego, lazer e circulação, onde cada função é facilmente identificada, é uma das críticas mais recorrentes feitas ao modernismo. Com essas atividades afastadas uma das outras, os indivíduos ficaram mais dependentes dos carros, que ganharam prioridade no desenho urbano das cidades, com amplas avenidas que incentivam o uso dos veículos particulares e as altas velocidades. Além do maior tempo gasto com a locomoção, os frequentes congestionamentos e a falta de estímulo para a escolha por outro modais – como transporte coletivo, bicicleta e caminhar –, essa visão para os municípios resulta em aumento das emissões de gases de efeito estufa e da poluição do ar e sonora.
Esse pensamento orientou a criação de localidades em diferentes partes do mundo até o momento em que ficou evidente que os espaços que seguiam as regras modernistas – que foram detalhadas na Carta de Atenas, divulgada na assembleia do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), em 1933 – não levavam em conta as necessidades reais de seus residentes, argumenta o arquiteto Luca Onniboni em artigo do Archiobjects. Segundo ele, o ser humano precisa se envolver com os outros e não é uma simples engrenagem em uma máquina, assim como as cidades também não são.
Ao se opor à forma tradicional com que os municípios eram constituídos, com a vida acontecendo nas ruas e a mistura de funções em uma mesma região, e buscar a racionalidade e o minimalismo, o modernismo trocou as vias públicas e praças como pontos de encontro pelos shopping centers. Essa é a análise feita pelo arquiteto e urbanista Sérgio Ulisses Jatobá em artigo no ArchDaily, que acrescenta outra consequência desse movimento: a expansão horizontalizada das localidades. Os subúrbios norte-americanos e as cidades-dormitórios brasileiras são exemplos dos efeitos dessa ação, que sobrecarrega e torna menos eficientes a distribuição e a oferta de serviços básicos, como os de água, transporte, tratamento de esgoto e energia.
Um dos motivos por trás da separação dos usos e do distanciamento entre as construções percebidos nos municípios com inspiração modernista era a preocupação em torná-los mais saudáveis e verdes para as pessoas. Em razão disso, altos prédios foram implementados isolados em grandes áreas com vegetação. Jatobá salienta que, em vez de alcançar esse objetivo, se produziu localidades que são “perdulárias em gastos energéticos e consumidoras do ambiente natural, ou seja, insustentáveis”. As edificações desse período destacam-se ainda pela ausência de ornamentos, formas básicas e composições assimétricas, descreve o Royal Institute of British Architects, bem como pelo emprego racional de materiais como o concreto aparente, aço e vidro e pela inovação estrutural.
No Brasil, a abrangência dessa escola não se restringiu à configuração de algumas comunidades e cidades, tendo repercussão também nas legislações urbanas, como assinala em artigo do ArchDaily o arquiteto e urbanista Paulo Sá Vale. Até hoje, municípios mantêm planos diretores e regras de zoneamento com divisão das funções, compartimentando as localidades. Ele afirma que essa informação pode ser confirmada através da verificação de como muitos lugares ainda proíbem a utilização do pavimento térreo dos prédios, buscam a criação de bairros e unidades habitacionais independentes e fomentam a livre circulação dos automóveis.
Reverter os impactos do modernismo tem sido a missão de muitos profissionais, ressalta o arquiteto e urbanista Anthony Ling em artigo do Caos Planejado, que procuram “desfazer erros cometidos no passado”. Entre as soluções propostas para atingir essa meta, ele indica o uso misto nos empreendimentos, reaproximando residências, comércio, trabalho e opções de lazer, o incentivo às fachadas ativas (que permitem a interação entre os espaços internos e externos, com a presença de comércios e serviços) no lugar dos pilotis livres e recuos que deixam as construções isoladas nos terrenos e a mudança de foco na definição dos sistemas de mobilidade, tirando a preferência dada aos veículos e pensando mais na multiplicidade de meios de deslocamento, na conexão entre eles e na priorização dos pedestres.
Conceitos do modernismo foram sintetizados por Le Corbusier
Um dos principais nomes da visão que dominou a maneira de planejar os municípios no século 20, o arquiteto, urbanista, pintor e escultor de origem suíça Le Corbusier foi um dos responsáveis pela disseminação das ideias modernistas e por reunir os seus princípios em sua Ville Radieuse (Cidade Radiante). O projeto, que nunca saiu do papel, foi apresentado em 1924 e seus detalhes e layout geométrico e simétrico foram divulgados por ele em um livro publicado em 1933, ano em que foi lançada a Carta de Atenas pelo CIAM. A obra, que tinha o mesmo nome da localidade idealizada por Le Corbusier, pretendia ser uma referência para a reconstrução de regiões europeias destruídas pela primeira guerra mundial, como relata matéria feita para o nosso portal.
A ordem e a forma perfeita almejadas por Le Corbusier foram alcançadas através da repetição do desenho elaborado para sua cidade, determinando um padrão que tinha na área central prédios pré-fabricados voltados para os negócios, informa a reportagem do ArchDaily. Essas edificações possuíam 200 metros de altura e capacidade para receber de 5 mil a 8 mil pessoas. Idênticas, essas construções em concreto armado e dispostas em cruz para não criar corredores eram cercadas de verde. No miolo desse ambiente da Ville Radieuse ficava a principal plataforma de transporte, que permitiria que os habitantes acessassem um sistema subterrâneo de trens que faria a conexão com os bairros residenciais.
Para a região de moradias, complementa artigo do arquiteto Olivier Barancy no Le Monde Diplomatic Brasil, Le Corbusier imaginou prédios com 50 metros de altura e espaço para aproximadamente 2,7 mil habitantes. A comunicação entre as edificações seria feita por meio de lugares verdes, que ofereceriam a iluminação e ventilação natural adequada e pouco ruído. A padronização externa das construções, que eram lisas, envidraçadas, herméticas e sem sacadas ou galerias, foi reproduzida no interior dos apartamentos. Apesar de estabelecer a área mínima necessária por residente, a Cidade Radiante possuía salas com as mesmas dimensões em unidades destinadas para duas ou quatro pessoas.
Conforme Barancy, o mesmo acontecia com as cozinhas que tinham o mesmo tamanho ficassem elas em um estúdio ou em um imóvel para uma família com quatro ou mais integrantes. O arquiteto frisa que ao avaliar os layouts da Ville Radieuse, que podem ser visualizados na Fondation Le Corbusier, é possível observar que a previsão de estacionamentos para as moradias era seis vezes menor que a demanda. A explicação para essa distorção, na opinião de Barancy, está ligada à vontade do criador da localidade que o espaço pavimentado não invadisse as regiões com vegetação. A falta de identidade e de consideração sobre as necessidades dos indivíduos quanto a suas casas são algumas das críticas ao projeto de Le Corbusier.
Capital do Brasil é o principal símbolo do modernismo mundial
Concebida pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa como um monumento que representasse a sua importância e organizasse a vida de seus futuros habitantes, Brasília é a maior referência de cidade erguida a partir dos parâmetros modernistas. Prestes a completar 63 anos desde a sua fundação, a capital brasileira precisa lidar ainda hoje com os reflexos das decisões urbanísticas tomadas na época de sua construção. Seguindo os ideais de Le Corbusier, o Plano Piloto foi desenvolvido com a setorização dos usos, afastando moradias, eixo monumental (onde ficam os prédios públicos e as obras do arquiteto e urbanista Oscar Niemeyer), e as áreas cultural, hoteleira e de comércio e bancos.
Essa separação de atividades dificultou a ocupação dos ambientes coletivos pelos residentes, aponta reportagem da BBC Brasil. Outro problema citado foi privilegiar os deslocamentos feitos de carro, deixando o transporte público em segundo plano, assim como aqueles que não têm automóvel. A ausência de semáforos e cruzamentos também é criticada por colocar em risco a segurança dos pedestres. Além disso, a proposta das superquadras se revelou como um projeto caro e para poucos, que acabou sendo executada em uma pequena parcela do Plano Diretor, pontua a BBC.
Com um olhar distinto para a idealização dos espaços urbanos, o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, criador do conceito de cidade para pessoas, chamou o padrão de planejamento da capital do País de “Síndrome de Brasília”, como lembra matéria do nosso portal. Para ele, a localidade é interessante do ar, vista do avião, porém não houve preocupação em como ela seria na altura dos olhos. “Tudo é gigantesco, os parques e monumentos, e ordenado. O que não é grande é como os indivíduos são tratados, em como se locomovem e caminham”, enfatizou Gehl durante palestra no TEDx Talks. De acordo com a reportagem da BBC, o próprio Lúcio Costa admitiu, em uma entrevista muitos anos depois da inauguração da capital brasileira, que não deveria se insistir na divisão da cidade por funções.
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