Reunir em um mesmo espaço ou complexo imobiliário diferentes atividades, que funcionam em horários variados, eleva a movimentação de indivíduos, melhora a experiência que eles têm nos ambientes urbanos e ainda contribui para reduzir índices de criminalidade.
Em que local as pessoas se sentem mais protegidas em seus municípios? Áreas que possuem vida durante todo o dia, com gente caminhando e entrando e saindo de escritórios, lojas, restaurantes, farmácias, livrarias e de suas casas – o que a escritora, jornalista e ativista Jane Jacobs chamou de o “balé das ruas” – aumentam a sensação de segurança de quem passa por essas regiões em comparação com aquelas onde predominam os veículos nas vias e a circulação de cidadãos ocorre somente em determinadas horas. Diversos estudos realizados nas últimas décadas demonstram que a movimentação contínua e a ocupação dos espaços públicos e privados ajudam a diminuir as taxas de criminalidade.
Bairros e empreendimentos de uso misto, aqueles que combinam moradia, trabalho, serviços, comércio e lazer em um mesmo lugar, aprimoram a experiência dos usuários nas cidades, promovem mais interações sociais e incentivam a utilização do transporte público e de outros meios de mobilidade ativa, como andar a pé ou de bicicleta. A criação de comunidades e projetos que agreguem múltiplas funções auxilia também na queda da dependência dos carros para os deslocamentos, evitam o maior espraiamento das localidades e reduzem os impactos ambientais dessas ações.
Ao adotar essa visão para o futuro dos municípios, em vez de áreas que contam com habitações e poucas opções de comércio instalados nas zonas periféricas e um distrito comercial separado no ponto central, as regiões são idealizadas de forma mais consistente e com planejamento para a expansão territorial, defende a mestre em arquitetura e em Desenvolvimento Imobiliário, Kaley Overstreet, em artigo para o ArchDaily. Ela comenta ainda que a pesquisa “Reducing crime by Shaping the Built Environment with Zoning: An Empirical Study of Los Angeles (Diminuindo o Crime através da Construção do Espaço por meio do Zoneamento: um Estudo Empírico de Los Angeles)”, da Universidade da Pensilvânia (EUA), revela que bairros com cafés, bares, escritórios e unidades residenciais são mais propensos a terem uma quantidade maior de “olhos da rua” por mais tempo ao longo do dia.
A expressão, também cunhada por Jane Jacobs em seu livro “Morte e Vida das Grandes Cidades”, publicado em 1961 e considerado até hoje uma referência na forma de pensar as localidades, trata da vigilância consciente ou inconsciente que acaba sendo feita pelas pessoas que caminham pelas vias públicas ou que contemplam as calçadas e os negócios de suas comunidades através das janelas de seus imóveis. O levantamento, reforça Kaley, investigou oito bairros do município da Califórnia que são conhecidos por terem índices de crime acima da média e analisou zonas com moradia, comerciais e outras que vivenciaram uma transformação para empreendimentos de uso misto com o passar dos anos.
Entre os resultados obtidos pela pesquisa está a identificação de que lugares que concentravam um expressivo número de prédios comerciais sofreram 40% a mais com a criminalidade do que os demais avaliados, principalmente em relação aos ambientes que incluíam habitações. Para a arquiteta, já que os escritórios são acessados massivamente durante o dia, faz sentido que o estudo tenha apurado um incremento dos registros de delitos à noite. Outra descoberta do levantamento foi que nos espaços que as regras de zoneamento possibilitavam o acréscimo de edifícios residenciais em áreas comerciais houve uma diminuição de 7% nos registros de crimes, especialmente quanto aos incidentes ligados a automóveis.
Mais um fator percebido pelos pesquisadores é que os moradores têm um maior sentimento de pertencimento nas comunidades onde vivem do que naquelas que frequentam apenas por causa de seus empregos. Além disso, nas regiões que contam com uma mescla de atividades, os indivíduos tendem a se sentirem mais conectados e protetores das lojas, bares, restaurantes e outros serviços que ali estão presentes. Kaley salienta que o estudo mostra aos urbanistas e arquitetos que as leis de zoneamento podem ser uma ferramenta importante para auxiliar na prevenção de crimes nas cidades e que, junto com outros elementos, não devem ser negligenciadas.
Quando o assunto é melhorar a segurança dos lugares, as soluções normalmente passam por ampliar as calçadas, aperfeiçoar a iluminação e instalar sistemas de vigilância públicos, mas a esses itens pode ser acrescentado o uso misto em novos complexos e bairros, conforme enfatiza Kaley. A arquiteta lembra ainda que empreendimentos e comunidades com distintas funções demandam mais infraestrutura e estabilidade econômica para se manterem. Uma vez que atraem mais cidadãos aos seus ambientes em diferentes horários do dia, é essencial a contrapartida das administrações locais para elevar a frequência da coleta de lixo e a conservação das ruas, dos passeios públicos e do esgoto, por exemplo, qualificando a experiência dos usuários nesses espaços. Repensar a maneira como as edificações irão ocupar as áreas urbanas, permitindo fachadas ativas, reduzindo os recuos dos prédios das calçadas e liberando uma maior densidade nas construções, também é fundamental para deixar essas regiões mais vibrantes e seguras.
Conceber ambientes atrativos e recuperar regiões degradadas elevam segurança dos municípios
Investir nos lugares, oferecendo espaços com os quais a população se identifique e queira estar, é um dos desafios que planejadores e desenvolvedores imobiliários enfrentam na criação de praças, parques, bairros e complexos que estabeleçam conexões entre a área e aqueles que a usam e que se tornem um destino: um ponto para onde as pessoas desejem ir por causa das comodidades e facilidades que disponibiliza. A socióloga Hanna Love afirma em relatório veiculado pela Brookings, organização de políticas públicas sem fins lucrativos sediada em Washington D.C. (EUA), que para compreender as causas da violência nas cidades, e mais especificamente dos crimes com armas de fogo, e encontrar medidas que contribuam na queda desses índices é necessário se aprofundar na relação que há entre local e insegurança.
Baseada em décadas de levantamentos sobre o tema, Hanna ressalta que nos municípios norte-americanos – panorama pesquisado pela socióloga – a violência está concentrada espacialmente na maioria das vezes em comunidades sem investimentos e muito pobres e que dentro desses ambientes a criminalidade ocorre em ruas específicas. Publicado no final de 2021, o estudo indica que nesses bairros a quantidade de habitantes de cor (termo usado naquele país para descrever afro-americanos, latinos, asiáticos e nativos-americanos) é muito maior, assim como as desvantagens sociais, como taxa de pobreza e desemprego altos e menores níveis educacionais.
A partir de uma apuração que reuniu dados de 103 grandes regiões metropolitanas dos Estados Unidos, entre 1970 e 2010, Hanna verificou que a segregação racial incrementou significativamente o risco de cidadãos negros serem vítimas de homicídio. Outros artigos e relatórios analisados pela socióloga apontaram que residências densamente lotadas, elevado número de estabelecimentos de venda de bebidas alcóolicas, execuções hipotecárias e edifícios e terrenos abandonados estão diretamente relacionados a parâmetros maiores de violência. Hanna assinala que para resolver a questão da criminalidade espacialmente concentrada é preciso apoiar e investir no aprimoramento de locais mais vulneráveis.
A ausência de lugares para a interação social, as desvantagens econômicas e a falta de organizações civis e comunitárias são outros pontos que influenciam a ocorrência de crimes violentos, frisa a socióloga, que complementa que a introdução de ações não carcerárias pode aumentar a segurança dos indivíduos. No que se refere aos ambientes construídos, Hanna relata que diversos levantamentos comprovam que a reforma de moradias, prédios e lotes deteriorados existentes nas áreas sem investimentos diminuem os índices de criminalidade. Essas informações, argumenta a socióloga, revelam que planejadores urbanos devem entender a conexão entre as condições físicas de uma região e a ocorrência de delitos armados. E, fundamentados nesses dados, implementarem vias com iluminação pública, fachadas ativas, praças, fomentarem o uso misto do solo e buscarem novas atividades para terrenos abandonados. Dessa forma, acredita Hanna, é viável criar espaços melhores, mais seguros e prósperos.
Placemaking é aliado no desenvolvimento de ambientes qualificados e com mais proteção para as pessoas
Muitas cidades pelo mundo estão mudando as suas estratégias para lidarem com as razões e as consequências da violência, expandindo a visão sobre o assunto e as medidas empregadas para reverter esse contexto. Em seu relatório para a Brookings, a socióloga Hanna Love traz um exemplo de Brownsville, Brooklyn (Nova York), onde jovens estão se engajando em iniciativas de placemaking. Por meio dessa abordagem multidisciplinar de planejamento, design urbano, arquitetura e de gestão para a idealização de áreas pensadas em como os usuários irão utilizá-las e com a participação efetiva dos indivíduos na sua elaboração, os moradores mais novos daquela localidade estão mapeando os níveis de segurança em sua vizinhança e apresentando propostas inovadoras para reduzir a violência.
O placemaking, que pode ser traduzido como “fazer lugares”, ganhou mais visibilidade como ferramenta para a criação de regiões com significado e funcionalidade para as pessoas a partir da década de 1990, através do Project for Public Spaces (PPS), como detalha matéria feita para o portal Somos Cidade. No entanto, a percepção de que os espaços urbanos devem ser vivos e convidativos e que tenham os seres humanos como o centro de seus projetos existia muito antes. Nos anos 1960, pensadores como Jane Jacobs e William “Holly” Whyte já defendiam essa forma de olhar e desenhar os municípios. Esse método pode ser usado em empreendimentos de várias escalas, tanto do segmento privado como do público, desde uma rua, uma praça, um complexo a um bairro inteiro.
A Cidade Criativa Pedra Branca, em Palhoça (SC), teve uma experiência bem-sucedida com o método para o desenvolvimento de seus ambientes, conforme explicou a gerente de Marketing do Grupo Pedra Branca, Clarice Mendonça de Oliveira, na reportagem do Somos Cidade. Ela ponderou ainda que lugares com uso misto, com conveniências que podem ser acessadas por meio de uma breve caminhada, impactam positivamente no bem-estar dos indivíduos e estimulam uma rotina mais saudável e dinâmica. Da mesma forma, locais convidativos, seguros e bem planejados, que aliam distintas atividades e meios de locomoção, despertam a curiosidade de seus usuários e a vontade de permanecer neles. “Lugares assim, que são ocupados de maneira espontânea, deixam a atmosfera mais feliz e agradável”, reforça a gerente de Marketing.
No entanto, mesmo comunidades ou empreendimentos concebidos a partir dos princípios do placemaking, engajando os seus múltiplos públicos e ouvindo suas necessidades, podem acabar sendo usados de formas diferentes das imaginadas originalmente para eles. Clarice recorda de uma situação vivida durante a pandemia de coronavírus, em 2020, quando o Passeio Pedra Branca, o shopping a céu aberto do complexo, passou a ser utilizado de maneira desordenada, o que levou a uma queda no sentimento de segurança que havia naquela área. Devido às restrições da Covid-19 e com muitos estabelecimentos fechados e eventos cancelados, jovens de várias idades do bairro e de outras regiões começaram a se reunir naquele espaço e a trazer problemas e confusões.
Em um primeiro momento, a solução pensada foi a que associava segurança com mais policiamento. A gerente de Marketing narra que, a cada final de semana que se sucedia, as dificuldades aumentavam e ela não reconhecia mais aquele ambiente urbano. A resposta para aquele cenário foi baseada no conceito definido para o Pedra Branca, que é o de “rua como palco da vida”. Com essa referência em mente, foram buscadas ações alternativas para lidar com a questão. No primeiro sábado e domingo após essa resolução, além de seguranças, palhaços, brinquedos infláveis e atrações culturais tomaram conta das vias e esquinas mais disputadas. Clarice sustenta que aos poucos, com a diversificação das atividades e dos usuários, os lugares foram sendo usados de distintas maneiras e as coisas foram se reorganizando. Ela conclui que essa experiência evidenciou o quanto uma cidade ocupada por diferentes pessoas, com estabelecimentos nas ruas, fachadas ativas e variadas funções pode ser mais segura e feliz.
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