Shabbificação

Vias públicas planejadas para se adequarem às necessidades pontuais da população, permitindo que os ambientes públicos sejam alterados para receber diferentes atividades ou para liberar ou proibir o trânsito, são essenciais para o desenvolvimento de municípios resilientes e focados nas pessoas.

Muitas cidades pelo mundo estão buscando soluções para reencontrar o equilíbrio que existia entre pedestres e veículos nos espaços urbanos antes do desenho das localidades passar a ser centrado nos automóveis, o que ocorreu a principalmente a partir da segunda metade do século XX, como salienta o editor do Public Square, Robert Steuteville, em artigo do jornal do Congresso para o Novo Urbanismo (CNU). Entre as opções para tornar as regiões centrais e internas dos bairros mais convidativas e adaptáveis a diversos usos, municípios de variados portes têm investindo na transformação de vias públicas em ruas flexíveis (flex street), nas quais aqueles que caminham, pedalam e dirigem compartilham a mesma área. 

O conceito ganhou ainda mais fôlego no período da pandemia de coronavírus, quando as cidades precisaram encontrar medidas para garantir a circulação segura da população ao mesmo tempo que procuravam formas de manter os negócios mais afetados em funcionamento. Nesse sentido, surgiram as Vias Abertas e Streeteries (combinação de “street”, rua, com “eateries”, restaurantes), que tinham o objetivo de expandir os ambientes que poderiam ser utilizados pelos indivíduos e reduzir ou impedir carros em determinados horários e trechos das vias. As flex streets seguem esse mesmo princípio de repensar a configuração dos lugares, melhorando a experiência de todos que passam por eles e aliando estacionamentos para bicicletas e veículos, embarque e desembarque do transporte coletivo e de caronas e mesas e cadeiras de cafés e bares.

Com calçadas mais largas, vegetação, mobiliário e sem a presença de degraus ou desníveis entre as faixas destinadas para os automóveis e os passeios públicos, as ruas flexíveis podem ser facilmente adequadas para fechar o tráfego para os carros ao longo de uma ou mais quadras de uma comunidade para virarem pequenos parques urbanos e espaços para a realização de festivais, eventos culturais e gastronômicos ou para restaurantes e cafeterias ampliarem seus assentos para o exterior e para outras demandas dos cidadãos. 

A Clematis Street, em West Palm Beach, na Flórida (EUA), é um dos locais observados por Steuteville que pode servir como exemplo para outros municípios promoverem mudanças em suas vias. A reconfiguração de sete quarteirões da rua ocorreu em 2020 e envolveu um investimento de 18,8 milhões de dólares (R$ 91.556.000, em julho de 2023), de acordo com o editor do Public Square. Apesar de não ter sido uma obra barata, Steuteville considera que os seus benefícios – como a revitalização de um ponto central e a sua contribuição para o fortalecimento do sentimento de pertencimento das pessoas em relação a essa região e para a economia da cidade – compensam a aplicação dos recursos, que são bem menores do que os necessários para a construção de rodovias.

O projeto foi liderado pela empresa de consultoria em planejamento e design de localidades Kimley-Horn em conjunto com a companhia de idealização de municípios Dover, Kohl & Partners e contou com três fases. A meta era o reforço da Clematis Street como uma área social no centro de West Palm Beach através do desenvolvimento de uma paisagem urbana flexível para pedestres, ciclistas e motoristas, assim como para restaurantes e food trucks e outros comerciantes que fazem parte das iniciativas artísticas que ali ocorrem. 

Um dos principais destaques da ação são os pilares retráteis instalados nas faixas onde os indivíduos atravessam – acionados com um clique e que possibilitam que o trânsito para os veículos possa ser interrompido nos finais de semana, nos dias de festivais ou em determinadas épocas do ano, como no verão, em uma única ou distintas quadras. Além disso, o design das vias sem desníveis assegura que cadeirantes e pessoas com deficiência visual ou que andem com carrinhos de bebê se desloquem sem barreiras pelo ambiente e a troca ágil entre o uso de estacionamento nas ruas por lugares de lazer e descanso para os cidadãos e para fazer refeições ao ar livre. A inspiração, acrescenta o editor do Public Square, foi a Rue Saint-Jean, em Quebec (Canadá). 

As melhorias desencadeadas há três anos aumentaram os espaços para os pedestres, conforme informações da Kimley-Horn, e forneceram pontos sombreados para que moradores e visitantes aproveitem a região e os seus comércios e serviços com a interferência mínima de automóveis, que têm que diminuir a velocidade ao trafegar nessa área da cidade, e o realocamento das vagas para carros. A Clematis Street possui também outra inovação: ela é a primeira via de West Palm Beach a contar com um sistema de pavimento suspenso para dar suporte à estrutura acima do solo. Ele foi concebido para que as raízes dos grandes carvalhos plantados no local cresçam sem causar danos à calçada e à rua com o passar dos anos. 

Estendendo-se abaixo da superfície dos estacionamentos permeáveis, esse sistema tem um biovala subterrânea que atrai a drenagem superficial da via diretamente para a extensa zona de raízes das árvores, ajudando na absorção da água das chuvas e evitando inundações, detalha o site da Kimley-Horn. A segurança é uma preocupação que muitos tinham com relação à implementação de uma rua sem desníveis entre a calçada e os veículos, complementa Steuteville. Os temores de que mais acidentes de trânsito acontecessem não se concretizaram, aponta ele. A explicação para isso pode estar no fato da velocidade com que os automóveis podem circular na Clematis Street ter sido reduzida.

Dundas Place, um exemplo de flex street que vem de London, no Canadá

Diante das vantagens que as vias flexíveis trazem para os municípios, em 2021 o laboratório de estudos do escritório de arquitetura e planejamento urbano Perkins & Will fez uma pesquisa sobre o assunto e elaborou diferentes tipologias de flex street que podem ser utilizadas pelas cidades para reavaliar o seu futuro, de sua mobilidade e dos usos das ruas e implementar essas modificações. O documento traz alternativas para vias públicas principais, de bairros comerciais e habitacionais e ainda para aquelas que ficam em comunidades apenas com residências. 

O Dundas Place, em London, na província de Ontário, no Canadá, virou uma flex street com calçadas bastante largas, sem meio-fio e com vagas de estacionamento que podem ser transformadas em pátios rapidamente e serem utilizadas por artistas, para celebrações, atividades culturais ou por cafés, bares e restaurantes. Inaugurada em 2019, a medida teve um investimento de 16 milhões de dólares canadenses (R$ 58.720.000, em julho de 2023) e tornou o destino comercial da localidade em um novo e dinâmico ambiente de interação entre os moradores e turistas, relata matéria do canal de notícias canadense CBC News. 

A união de caminhantes, ciclistas e motoristas em um lugar atrativo cria um município animado, afirmou à reportagem o gerente de Regeneração Urbana de London, Jim Yanchula. Ele ressaltou também que para o Dundas Place comportar diversas funções, os elementos presentes na via não são fixos – como vasos, algumas luzes e os pilares que fazem a separação entre pedestres e os carros no lado Sul da rua. A exceção são os assentos em formato de seixos que ficam em espaços específicos do trajeto. 

Além disso, vários tipos de árvores foram plantados ao longo da flex street que, assim como na Clematis, têm uma boa área no subsolo para as espécies se expandirem sem provocar rachaduras ou outros danos nas calçadas e faixas para os automóveis. Uma iluminação especial para marcar a região foi idealizada para o Dundas Place de London. Yanchula comentou ainda que, mesmo que boa parte das qualificações sejam facilmente identificáveis, a maioria dos trabalhos efetuados foram no subsolo, como a modernização dos sistemas de esgoto e de telecomunicações. Embora não haja degraus para separar o passeio público dos veículos, o pavimento da via conta com uma alteração na textura para alertar as pessoas com deficiência visual quando elas estiverem se afastando muito da calçada.  

Oakland, nos EUA, simplificou sistema de autorização para as ruas flexíveis

Lançada em junho 2020 como uma opção para viabilizar comércios e distintos negócios afetados pela pandemia de Covid-19 e possibilitar à população mais lugares ao ar livre, a cidade norte-americana de Oakland, na Califórnia, deixou menos complexo o processo de obtenção de licença para a instalação de flex streets. Desde então, foi autorizada a operação de 140 cafés e parklets (estruturas públicas implementadas de maneira temporária ou permanente nos pontos de estacionamentos nas vias) nas calçadas expandidas, 13 ruas foram fechadas para os carros e mais de 60 licenças para o funcionamento de food trucks foram emitidas, segundo dados da prefeitura local. 

Para tornar o projeto das flex streets definitivo, Oakland aprovou uma série de decretos no ano passado para que as empresas possam continuar usando os ambientes públicos. Uma das formas encontradas pela administração municipal para que o programa seja sustentável foi introduzir, em 2023, taxas de inscrição e licença para as companhias que desejam fazer parte da iniciativa. Os recursos serão empregados para cobrir os custos de processamento e monitoramento das autorizações concedidas. A cidade deve ainda estabelecer isenções para que isso não se transforme em uma barreira para a participação de negócios mais vulneráveis de Oakland. Serão definidos critérios de equidade que serão analisados para que as taxas não sejam cobradas, mudanças que vão ser avaliadas pelo Conselho local no segundo semestre deste ano. 

Assim como os passeios públicos, as vias e propriedades privadas, podem ser solicitadas licenças para a utilização de espaços externos que pertençam à prefeitura para eventos e outras ações artísticas e gastronômicas, como parques e terrenos sem uso. Apesar de muitos exemplos de ruas flexíveis serem nos Estados Unidos e no Canadá, esse tipo de alternativa para reverter o atual cenário de planejamento e decisões sobre o desenho dos municípios centrados nos automóveis vêm sendo buscado por diferentes cidades brasileiras. Diversas localidades já adotaram a prática de fecharem algumas vias nos finais de semana para os carros, dando a oportunidade para que pedestres e ciclistas se locomovam com segurança e ocupem essas áreas. O Parque do Minhocão, em São Paulo, é uma referência, assim como o Brique da Redenção, em Porto Alegre, e a Feira do Largo da Ordem, em Curitiba, para citar algumas.

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