Zoneamento

Apontado por diferentes estudiosos como peça-chave para a expansão urbana e a segregação racial e econômica dos Estados Unidos, o zoneamento euclidiano dividiu as localidades em áreas residenciais, comerciais e industriais, afastando-as. Para minimizar seus efeitos, diversos municípios estão começando a alterar suas leis.

A maneira como as cidades estão estruturadas e se desenvolvem – com a presença de moradias em determinados bairros e de empresas, varejo e serviços em outros – tem ligação direta com as regras estabelecidas nos zoneamentos urbanos. É esse conjunto de normas que regula o uso e a ocupação do solo e as atividades que podem ser realizadas em uma região. Essa forma tradicional de segmentação dos territórios (habitacional, comercial e industrial), que ainda é utilizada por distintas localidades pelo mundo, principalmente nos Estados Unidos, onde foi um dos fatores-chave para o espraiamento e pela característica suburbana da maioria de seus municípios, tem suas origens no início do século XX, com o zoneamento euclidiano.

O nome vem de uma decisão da Suprema Corte norte-americana, de 1926, sobre o caso do vilarejo de Euclid, em Ohio, versus Ambler Realty Company, que garantiu ao governo da cidade o poder de definir como suas terras seriam usadas, assim como quais formatos e alturas os imóveis poderiam ter, relata matéria da Bloomberg. A partir disso, muitas localidades passaram a implementar leis de zoneamento euclidianas, assegurando que as casas ficariam longe de fábricas, bairros históricos e espaços abertos seriam preservados e os preços das propriedades nos novos subúrbios seriam protegidos.

Euclid não foi pioneira em criar um código sobre o uso e a ocupação do solo, informa artigo do Strong Towns, porém foi o primeiro município nos Estados Unidos que teve a sua situação analisada pela Suprema Corte, o que a tornou conhecida e simbólica. Outras cidades já haviam idealizado regulamentações nesse sentido, mas abordavam questões como segurança contra incêndio ou se aplicavam a pequenas áreas, detalha a Bloomberg. Um exemplo dado é o do distrito de Country Club, em Kansas City (Missouri), que no começo dos anos 1900 orientou que, entre outros pontos, as residências fossem voltadas para a rua e proibiu a venda de unidades para pessoas negras. Várias localidades aprovaram zoneamentos baseados em raça na década de 1910, que foram derrubados pela Suprema Corte. Em 1916, o município de Nova York foi o primeiro a lançar regras mais abrangentes para o desenho e ocupação de seus territórios.

O zoneamento euclidiano acabou sendo levado ao extremo por muitas cidades, como descreve artigo do Planetizen, que não só permitiam um único tipo de função em cada região, mas também impediam qualquer variação desse uso. Nas comunidades voltadas apenas para moradia, a construção de habitações era aceitável, porém a de apartamentos não. Essa resolução desencadeou a disseminação dos bairros exclusivamente unifamiliares nos Estados Unidos, em que somente um imóvel pode ser erguido por lote.

Entre os muitos impactos dessa maneira de planejar as localidades, vários deles sentidos até os dias de hoje, estão desde os efeitos ambientais da expansão urbana e do seu incentivo à maior utilização dos veículos para fazer os deslocamentos diários. Como reforça o Planetizen, com o afastamento das casas dos lugares de trabalho, os cidadãos ficaram mais dependentes de seus automóveis para resolver questões simples, como ir ao escritório, às compras, às escolas e até mesmo aos espaços de lazer. Além do tempo perdido na locomoção, a circulação de mais carros nas vias públicas aumenta a emissão de gases de efeito estufa, acentuando a crise climática.

Esse modelo de desenvolvimento de baixa densidade e que agregou também limites mínimos de estacionamento teve consequências, de acordo com a Bloomberg, na aparência, no funcionamento e na pegada de carbono dos municípios norte-americanos. Outro problema intensificado pelo zoneamento euclidiano, ressaltado por artigo da Escola de Direito da Universidade de Boston, foi a segregação e a escassez de oferta de moradias. As restrições aos tamanhos mínimos dos lotes, os códigos rigorosos de edificação e outros elementos incluídos nas normas elevaram os custos da habitação, bem como trouxeram obstáculos para a construção de novas unidades. Com isso, o acesso aos imóveis foi agravado, aumentando a desigualdade nas áreas urbanas.

A Bloomberg recorda que, em muitos casos, os bairros afro-americanos eram zoneados para usos que os brancos não queriam perto deles, provocando uma queda acentuada nos valores das propriedades nas comunidades negras. O zoneamento euclidiano, salienta artigo do jornal Public Square do Congresso para o Novo Urbanismo (CNU), excluiu minorias e famílias de baixa renda de bairros desejáveis, com infraestrutura qualificada, e inibiu que residências a valores acessíveis fossem erguidas, enfatizando o seu reflexo na segregação.

Outras formas de desenhar as cidades são possíveis

Diante das consequências dos zoneamentos euclidianos, que vêm sendo mais pesquisadas nos últimos anos, diferentes localidades têm buscado outros caminhos para projetar seus ambientes urbanos. Uma das soluções assinaladas pela Bloomberg é o uso misto, que permite a combinação de apartamentos, escritórios e comércios em um mesmo empreendimento, reaproximando moradia, trabalho e serviços. A publicação lembra que esse era o tipo de urbanismo defendido por pensadores como Jane Jacobs, que acreditava que era preciso trazer a vida de volta às ruas, com mais pessoas circulando ao longo de todo o dia e podendo executar as tarefas cotidianas através de uma caminhada.

Outra possibilidade é o zoneamento baseado em forma, destacado pelo Public Square, jornal do CNU. Nesse caso, o foco passa a ser o aspecto físico dos prédios e não como eles serão utilizados. Essas leis abordam critérios como a relação entre as fachadas dos edifícios com os espaços públicos e entre eles mesmos, a escala e como serão as vias e os quarteirões. O artigo afirma ainda que introduzir essas modificações nas regras pode ser difícil para os governos municipais, seja por falta de força política, financeira ou de interesse em promover uma revisão do código. Para contornar essas limitações, muitas cidades estão desencadeando essas transformações gradualmente para atualizar suas regulamentações.

O zoneamento de performance é mais uma opção que começa a ser empregada por algumas localidades. Em vez de dividir um município pelo uso do solo, são estabelecidas metas de desempenho e padrões que devem ser cumpridos em cada uma das regiões. Esse formato de planejamento prioriza o alcance de objetivos econômicos, sociais e de habitação que precisam ser atingidos pelos desenvolvedores, ficando para esses a decisão sobre qual empreendimento irão fazer para alcançar os parâmetros definidos. Além disso, as cidades que escolhem implementar essa ferramenta avaliam os impactos de novos complexos na vizinhança e a a conexão entre as iniciativas e os lotes em que serão edificadas. Em geral, essa metodologia exige também a identificação e o mapeamento das estruturas históricas e dos recursos ambientais que devem ser protegidos em uma propriedade.

E há ainda a estratégia eleita por Houston (Texas) durante o processo de reavaliação de seu código: a de acabar com o zoneamento por usos. A localidade conta com leis que verificam o efeito que novos empreendimentos podem causar à população, considerando desde ruídos e poluição ambiental e luminosa aos riscos de incêndio e de inundação, para aprovar ou não as propostas imobiliárias.

 

Mudanças nos zoneamentos que podem elevar a oferta de imóveis

A escassez de residências e o alto preço das unidades são uma realidade vivida pela maioria dos municípios no mundo. No Brasil, faltam cerca de 5,8 milhões de moradias, conforme dados do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional de 2022. O déficit nos Estados Unidos é de 3,7 milhões de habitações, revela artigo da Associação Americana de Planejamento, que agrega que o preço das casas em 98% das áreas metropolitanas do país registrou incremento de, em média, 8,6% chegando a 400 mil dólares. Já os aluguéis naquela nação aumentaram 15% em um ano, as informações foram divulgadas em 2023.

A política atual de zoneamento é vista por urbanistas, apoiadores da reforma dos códigos e integrantes do movimento Yimby (Sim no Meu Jardim, da sigla em inglês) como a grande responsável por parte dessa escassez. A entidade lista diversas medidas que podem ser aplicadas nas regulamentações para reverter esse cenário, como a eliminação do zoneamento unifamiliar, que autoriza que apenas um imóvel seja construído em um lote. Esse tipo de propriedade ocupa, segundo a Associação Americana de Planejamento, em torno de 75% do território das cidades norte-americanas. Minneapolis (Minnesota) foi pioneira, em 2018, em acabar com essa norma.

O fim dos requisitos mínimos de estacionamento é mais uma ação que pode contribuir para que mais residências sejam erguidas. Essas exigências fazem com que os Estados Unidos tenham aproximadamente dois bilhões de vagas para veículos, grande parte delas ficam vazias e oneram o meio ambiente, o uso do solo e os custos de edificação, sustenta a organização. A associação calcula que o estacionamento em garagem signifique 142 dólares por mês a mais no valor de um aluguel.

Já o diretor de pesquisa do Califórnia Yimby, especialista em regulamentação do uso do solo e autor do livro “Linhas Arbitrárias: Como o Zoneamento quebrou a Cidade Americana e como corrigi-lo”, Nolan Gray, adiciona a essa lista a legalização das Unidades Habitacionais Acessórias (ADUs, da sigla em inglês). Em artigo no Strong Towns, ele argumenta que a liberação para que garagens, sótãos e porões não utilizados possam ser alugados possibilita que o dono do lugar ganhe uma nova fonte de renda ou possa trazer a família para viver mais perto e que os inquilinos encontrem moradia em bairros bem estruturados.

Permitir também a edificação de imóveis médios, propriedades multifamiliares como duplex, tríplex e quadriplex, para elevar a densidade de comunidades até então unifamiliares, e a adaptação de prédios e de complexos de escritórios em novas residências são mais soluções dadas pela Associação Americana de Planejamento. Em 2023, Nova York anunciou que iria repensar o zoneamento de distritos para viabilizar a conversão de salas comerciais vazias em até 20 mil habitações.

Nolan aponta ainda que reduzir ou eliminar as exigências de tamanho mínimo dos lotes e das unidades seria outra maneira de estimular que mais moradias sejam construídas nas localidades. Além disso, o diretor de pesquisa defende que os negócios baseados em casa sejam legalizados, uma necessidade diante das alterações aceleradas pela pandemia de Covid-19, como o maior número de pessoas atuando em home office ou que abriram negócios em seus lares. “Em vez de listas antiquadas de utilizações permitidas e proibidas, concentre os seus regulamentos em impactos mensuráveis. Defina uma categoria de ‘empresas domésticas sem impacto’ e as isente da necessidade de licenças ou audiências públicas”, sugere Nolan aos municípios, assim como liberar as unidades comerciais acessórias, que seriam como ADUs para pequenas empresas.

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