Desde a pandemia, mais pessoas vêm incluindo a corrida ao ar livre em suas rotinas. No entanto, o desenho das localidades e a falta de estrutura urbana podem acrescentar novos obstáculos para quem faz essa atividade. Pensar os municípios também para esse público é mais um desafio para os profissionais de planejamento.
Muito se fala em cidades caminháveis, aquelas idealizadas com o foco nos pedestres e não nos carros, e mais preparadas para os ciclistas, mas pouco se comenta sobre o desenvolvimento de lugares considerando outro grupo de indivíduos que vem crescendo nos últimos anos: os corredores. O Brasil conta atualmente com cerca de 13 milhões de pessoas que fazem essa modalidade, conforme a Ticket Sports – maior plataforma de vendas de inscrições para eventos esportivos no País. A Associação Brasileira de Corridas de Rua informa, segundo matéria da Veja, que em 2023 foram realizadas mais de 150 mil disputas em vias públicas.
E esse não é apenas um fenômeno nacional, o relatório Ano Esportivo da Strava – aplicativo que monitora exercícios físicos e possui mais de 120 milhões de atletas conectados – revelou que correr foi a atividade mais popular no mundo em 2023. Apesar do público em ascensão, quem escolhe as ruas como local para essa prática enfrenta uma série de dificuldades, que vão desde buracos nos trajetos, inexistência de sinalização até calçadas estreitas. Mas, como o design dos municípios pode aprimorar a experiência desses indivíduos e incentivar que muitos outros adotem essa modalidade?
A criação de cidades adequadas para as corridas começou a ser debatida com mais intensidade a partir da conferência da Sociedade Internacional de Planejadores Urbanos e Regionais, ocorrida em Jacarta (Indonésia), em 2019, recorda a chefe da Escola de Ambiente Construído e professora de Planejamento Urbano da Universidade de Tecnologia de Sydney (Austrália), Jua Cilliers, em artigo para o The Conversation – plataforma que alia jornalismo e conhecimento científico. Ela assinala que, desde então, um grupo de profissionais tem refletido sobre o tema e maneiras de deixar os espaços mais preparados para esse esporte.
Assim como o termo caminhabilidade acabou entrando no vocabulário de urbanistas, arquitetos, engenheiros, gestores e daqueles interessados no assunto, esse time de planejadores definiu uma palavra em inglês para as áreas que oferecem melhores condições para esse exercício: “runnability”, que pode ser traduzida como a “correbilidade” ou a capacidade de correr de um lugar. Eles publicaram este ano um estudo em que se aprofundaram sobre os elementos do desenho urbano que ajudam a qualificar as localidades para essa atividade, como acessibilidade, movimento ininterrupto para os corredores (evitando paradas e cruzamentos, por exemplo), segurança, apelo estético e infraestrutura bem conservada.
Jua salienta que esses aspectos podem ser incorporados nos municípios através de iniciativas como a concepção de uma rede de pistas de corrida e de trilhas interconectadas que consigam ser facilmente acessadas a partir de diferentes pontos da cidade. Ela reforça que o ideal é que esses percursos sejam formados por corredores verdes que se ligam a outros parques e ambientes abertos, permitindo o movimento contínuo dos atletas. Compartilhar o espaço com pedestres, ciclistas e com veículos é outra questão importante a ser ponderada no desenvolvimento das regiões. A docente da Universidade de Tecnologia de Sydney aponta ainda que a proteção de quem corre pode ser garantida com trajetos bem iluminados e com a separação das pistas das faixas de trânsito.
Nesse sentido, Jua ressalta a necessidade de acalmar o tráfego, reduzindo as velocidades, seja por meio do estreitamento de faixas para os automóveis, pelo alargamento das calçadas ou pela instalação de paisagismo apropriado para cada área. Essa medida, de acordo com ela, aumenta a segurança dos corredores. A professora afirma também que redesenhar a infraestrutura para incluir lugares para a corrida ao lado de trilhas para a caminhada e de ciclovias é uma ótima ideia. Para Jua, o design das localidades deve estimular a mobilidade ativa e isso significa adicionar bancos, bebedouros e banheiros públicos ao longo das rotas, oferecendo mais estrutura para quem pratica esse esporte.
Além disso, ela observa que para um ambiente estar mais adequado para essa modalidade ele deve ser projetado tendo em mente a implementação de pistas que vão fomentar a realização do exercício e proteger os atletas, evitando superfícies irregulares, escorregadias ou desfavoráveis, como paralelepípedos. A sinalização é outro fator fundamental a ser analisado pelos planejadores, agrega a docente, ela deve ser simples e de fácil entendimento, possibilitando a identificação do caminho a ser seguido mesmo em espaços desconhecidos pelo corredor.
Com relação aos itens que deixam um município desagradável para correr, Jua cita calçadas estreitas, curvas fechadas e regiões com muitos semáforos. A esses elementos, ela acrescenta ainda o barulho do trânsito, os altos níveis de poluição, a iluminação precária e uma infraestrutura inadequada, como buracos, caminhos quebrados ou inexistentes, como aspectos que prejudicam a experiência daqueles que correm nas vias públicas. O calor urbano, que é agravado pelo excesso de concreto e falta de vegetação, também é destacado pela profissional como mais um ponto desfavorável.
Lugares ideais para quem faz corrida nas ruas
A disponibilidade de estrutura qualificada para a atividade combinada a áreas verdes e bonitas tornam uma cidade mais atrativa para os corredores, enfatiza a professora da Universidade de Tecnologia de Sydney, Jua Cilliers. Entre os destinos que reúnem essas características, ela indica Portland (EUA), Vancouver (Canadá) e Amsterdam (Holanda), como locais que estão apresentando grandes avanços na promoção das suas capacidades de correr (runnability), assim como Copenhagen (Dinamarca), que tem, conforme ela, uma extensa rede de pistas de corrida, ambientes naturais e uma forte ênfase em segurança e inclusão.
Uma das candidatas para receber o Campeonato Mundial de Atletismo de Corrida de Rua de 2026, a capital dinamarquesa vem se consolidando como um destino de referência para eventos esportivos, relata reportagem do canal de notícias SportsPro. Entre os motivos para isso, avalia a matéria, estão fatores como as belas vias públicas e arquitetura do município e a facilidade de se movimentar pela cidade, que conta com um transporte coletivo eficiente e espaços idealizados para privilegiar a circulação de pessoas e não dos carros.
Os atletas são ainda atraídos para a região por causa dos seus percursos de corrida serem planos e rápidos e por eles acontecerem principalmente no Centro, garantindo o acesso mais ágil de todos às provas. A existência de trilhas pelos lagos e pelo porto da localidade são outros pontos positivos listados pela diretora administrativa e chefe-executiva da Sparta Atletik & Motion, Dorte Vibjerg, ao canal. Ela, que também é corredora, complementa que Copenhagen é um lugar muito fácil de correr, seja de dia ou de noite, pois é seguro e bem iluminado.
Um município que vem elevando a satisfação de seus corredores e que pode servir de modelo para outras cidades é Helsinque (Finlândia), descobriu pesquisa divulgada na Science Direct e detalhada em reportagem da Running Magazine. Segundo a publicação, a capital finlandesa possui hoje 2,1 mil instalações públicas ao livre, entre campos, parques recreativos, piscinas aquecidas e pistas de corrida e de esqui, infraestruturas que estão distribuídas entre todas as áreas da localidade, assegurando o acesso a todos os moradores. O recente levantamento sobre o desenvolvimento urbano de Helsinque concluiu que esses serviços melhoram a satisfação dos residentes com as suas vidas.
Para investigar o impacto dessas estruturas nos níveis de atividade física e de felicidade dos finlandeses, os pesquisadores verificaram as rotas de GPS, de acordo com o Strava, utilizadas por corredores entre 2018 e 2021. As informações apuradas mostraram que, ao considerar densidade urbana, vegetação e abundância de água, o ambiente se transformou em um paraíso para a prática. Os autores do estudo frisam que o design urbano do município foca em três aspectos principais para incrementar a sua capacidade de corrida: verde ao nível dos olhos, verde de cima para baixo e densidade do espaço azul – a quantidade desse elemento presente em uma região.
Eles descobriram que esses itens aumentam a probabilidade de os indivíduos correrem e intensificarem a sua experiência e que o desenho de Helsinque reflete isso, com lugares densamente povoados apresentando parques e caminhos adaptados para os corredores. O verde também tem um efeito relevante sobre as pessoas, dos 13.322 segmentos de rua avaliados, aqueles com mais natureza apareceram como os mais usados pelos adeptos das corridas. Conforme a matéria, o relatório demonstra a importância de os planejadores urbanos incorporarem os exercícios no design das comunidades. A melhora da qualidade de vida e o bem-estar físico e mental dos habitantes são alguns dos retornos dessa estratégia, que contribui ainda para a economia, a sustentabilidade e meio ambiente de uma cidade.
Design ativo: criando localidades para os indivíduos se movimentarem mais
A maneira como os municípios são desenvolvidos influencia o comportamento de seus moradores e como eles irão utilizá-los e circular por eles, assim como o seu bem-estar e saúde. Cientes disso, diversas cidades estão, através do desenho das áreas, tirando do papel ações para incentivar as pessoas a se movimentarem mais. Essa visão foi impulsionada a partir do Design Ativo, conceito originado nos Estados Unidos, que tem como meta fazer os indivíduos caminharem mais, usarem as escadas, pedalarem e possuírem outras possibilidades de lazer, incorporando atividades físicas na rotina de um jeito fácil.
Iniciativas simples, como a melhoria das calçadas, podem auxiliar na mudança da forma como a população utiliza os ambientes urbanos, reforça reportagem do Ecycle. Localidades ativas costumam ser mais saudáveis também, resultado de distintas medidas implementadas, como o estímulo à construção de bairros de uso misto e a disponibilidade de um sistema de transporte coletivo eficiente. Essas estratégias tendem a elevar a prática de exercícios dos residentes que, ao terem suas habitações erguidas perto do trabalho, comércio, escolas, de parques e do lazer, passam a fazer os seus percursos diários a pé, de bicicleta ou de ônibus ou metrô, deixando os seus veículos em casa. Essa nova atitude impacta ainda na redução das emissões de gases de efeito estufa e da poluição do ar e sonora.
A principal publicação sobre o assunto é o Guia Design Ativo de Nova York (EUA), lançado em 2010 pelos departamentos municipais de Planejamento, Construção, Transporte e de Saúde, com o apoio do Instituto Americano de Arquitetos, que traz sugestões para a elaboração e qualificação de prédios, ruas, bairros e paisagens urbanas. A prefeitura da cidade norte-americana tem aplicado, segundo o Ecycle, o urbanismo como uma ferramenta para conceber uma localidade mais ativa, com reflexos na diminuição de recursos destinados à luta contra doenças causadas pelo sedentarismo e má alimentação, como diabetes e obesidade.
Além de frisar os benefícios do uso misto para as pessoas, o manual assinala a necessidade de idealizar empreendimentos em escala humana, unindo moradia, escritórios, lojas, centros culturais e comunitários e espaços para a recreação. O guia recomenta também a edificação de prédios próximos a estações de transporte público, facilitando o acesso e o deslocamento dos usuários, e a revisão do modelo atual de vagas de estacionamento nas vias.
Outro ponto salientado é a instalação de ciclovias e calçadas seguras e visíveis que levem até parques, praças e outras regiões de lazer – ação que faz com que esses lugares sejam frequentados e os indivíduos se movimentem mais. Uma ressalva feita pelo material é que essas regiões devem ser desenhadas pensando nos variados públicos que irão utilizá-las, com idades, preferências culturais diversas e que praticam distintos esportes, entre eles a corrida, e que todos precisam se sentir incluídos.
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