A cidade espanhola transformou, durante a Covid-19, trechos de vias do bairro central L’Eixample voltados para os veículos em locais para os pedestres e ciclistas. Pesquisa mostra que, diferente do que temiam os contrários à medida, a retirada de lugares para os automóveis não elevou o trânsito na região e sim diminuiu.
A preocupação crescente com as mudanças climáticas e com a retomada dos ambientes urbanos para os indivíduos tem levado diversos municípios pelo mundo a adotarem iniciativas para reduzir a quantidade de carros circulando pelas ruas e ampliar o espaço destinado para andar e pedalar e as áreas verdes e de lazer nas cidades. Dentro desse propósito, Barcelona, na Espanha, vem despontando cada vez mais como uma referência em projetos idealizados com o foco nas pessoas e na diminuição das emissões de gases de efeito estufa.
Um exemplo disso foram as várias ações de urbanismo tático desenvolvidas durante a pandemia de coronavírus pela prefeitura da localidade da Catalunha. Essa estratégia de planejamento prevê atividades simples, rápidas e de baixo custo – que podem ser temporárias ou permanentes –, como a instalação de parklets, mobiliário e vegetação, pinturas lúdicas e de jogos no asfalto para expandir as calçadas e melhora da sinalização viária. Apesar da oposição inicial de muitos moradores às modificações, justificada pelo receio que a remoção de faixas para os veículos aumentasse o tráfego e os congestionamentos, artigo publicado em 2022 apurou que ocorreu exatamente o contrário: nas vias com alterações houve uma queda no trânsito.
O estudo “Exploring Traffic Evaporation: Findings from Tactical Urbanism Interventions in Barcelona (Explorando a Evaporação do Tráfego: Resultados das Intervenções de Urbanismo Tático em Barcelona)” investigou os efeitos no trânsito em 11 ruas do bairro L’Eixample, no Centro do município, que passaram por mudanças durante o período de restrições da Covid-19, com a exclusão de uma ou mais faixas para automóveis em cada uma das vias. Realizado pelo pesquisador de pós-doutorado do grupo de Transporte, Mobilidade e Território do Departamento de Geografia da Universidade Autônoma de Barcelona, Samuel Nello-Deakin, o levantamento identificou, entre 2019 e 2021, uma redução de 23% nos níveis totais de tráfego nos trechos modificados e de 14% em comparação com as demais ruas da cidade.
Nello-Deakin também verificou – a partir da análise de dados de contagem de trânsito disponibilizadas pela administração local – que, embora tenha acontecido uma leve elevação dos índices totais de fluxo de carros nas vias paralelas adjacentes às ruas com alterações em relação a todas as outras de Barcelona, de 2%, nas demais vias da vizinhança não foi registrado um incremento representativo do movimento de veículos. Para o pesquisador, isso significa que houve uma evaporação do tráfego nas ruas com intervenções de urbanismo tático, sem aumentar a circulação no entorno.
Ainda com poucos estudos efetuados sobre o fenômeno, a evaporação do trânsito é a diminuição no fluxo de automóveis observada quando o lugar para os carros nas vias é reduzido. Ela é o oposto do conceito de tráfego induzido, em que ocorre uma elevação de veículos nas ruas a partir do acréscimo de pistas. Nello-Deakin aponta que diferentes fatores podem explicar a evaporação do trânsito, como um redirecionamento das viagens para outros meios de locomoção, como caminhar, pedalar ou utilizar o transporte público, a supressão desses deslocamentos (devido a mudanças de trabalho, casa, destino ou compartilhamento de automóveis) ou pelo encaminhamento desses percursos para outras regiões.
Levantamento apresentado em 2020 por pesquisadores também da Universidade Autônoma de Barcelona comprovou que a construção de novas vias teve como consequência o aumento do movimento de carros e não amenizou os engarrafamentos, como detalha matéria do The City Fix. Foram avaliadas informações de 545 municípios europeus de 1985 a 2005 para chegar a essa conclusão. A qualificação da infraestrutura e a rapidez nas viagens são alguns dos motivos que fazem com que mais motoristas optem por essas ruas ampliadas para seus trajetos, mesmo que eles sejam curtos, o que acabará resultando em maior fluxo e congestionamentos novamente.
Um dos estudos mais completos sobre a evaporação do trânsito foi elaborado em 2001 pelos pesquisadores Sally Cairns, Stephen Atkins e Phil Goodwin, destaca reportagem feita para o portal do Somos Cidade. Os autores do artigo revisaram 70 casos de realocação de ambientes viários, além de terem ouvido 200 engenheiros que atuam nesse setor e planejadores de distintas cidades. Eles perceberam, como nas demais apurações, que as pessoas ajustam o seu comportamento a partir da retirada de espaço para os veículos, escolhendo outras maneiras de fazer seus percursos.
Bairro L’Eixample deve ter 21 eixos verdes e 21 praças até 2030
Nos últimos anos, essa área de Barcelona vêm sendo parâmetro para o desenvolvimento das superquadras na localidade, que têm como objetivo moderar o tráfego, incentivar a mobilidade ativa – caminhar e pedalar – e diminuir os impactos ambientais. A região, que tem uma alta densidade populacional (36,2 mil habitantes por quilômetro quadrado, em 2020) e níveis de trânsito de passagem, poluição e ruídos, concentra atividades de turismo, restauração, bares, restaurantes e mercearias. De uso misto, o bairro está passando, desde 2022, por uma nova fase de redesenho de suas ruas, com a criação de eixos verdes em seu território.
Em vez de manter a concepção das superquadras, com o agrupamento de nove quarteirões formando um ambiente maior em que as vias internas são para os indivíduos e o movimento de automóveis deslocado para as bordas externas – a primeira experiência nesse sentido foi implementada em 2017, na comunidade de Poblenou –, a administração de Barcelona está transformando ruas específicas em toda a extensão de L’Eixample em pontos para os pedestres e ciclistas. As obras dos quatro primeiros eixos verdes e das quatro praças, que abrangem as vias Rocafort, Comte Borrell, Girona e Consell de Cent, começaram em junho do ano passado. A previsão da prefeitura é que até 2030 sejam implementados 21 eixos e 21 espaços públicos e verdes no bairro (cada um deles com aproximadamente 2 mil metros quadrados), originando lugares que priorizam os cidadãos – representando mais 33,4 hectares (334 mil metros quadrados) de área para a população e 6,6 hectares (66 mil metros quadrados) de verde.
Com essa estratégia, a meta é que os residentes da região tenham uma praça ou ambiente verde a cada 200 metros de distância, proporcionando espaços mais qualificados para a socialização e diversão. Muitas das modificações para acalmar o tráfego já foram iniciadas na pandemia de coronavírus por meio do urbanismo tático, adianta o governo municipal. Para a idealização do novo design das ruas da cidade, foram realizados dois concursos públicos, que tiveram quatro equipes vencedoras.
Em conjunto com a prefeitura, esses escritórios de arquitetura e engenharia projetaram o modelo que será aplicado em todos os eixos verdes de Barcelona em termos de usos, mobilidade, acessibilidade, pavimento, mobiliário e iluminação. Os trabalhos dessa primeira etapa no L’Eixample devem ser concluídos neste ano e possuem um orçamento de 52,3 milhões de euros, de acordo com a administração local. A intenção é que todo o município seja contemplado com essa alteração, que continua a ser identificada como superquadras.
Com menos carros nas vias, Barcelona reduz poluição do ar em mais de 30%
As diversas iniciativas desencadeadas pela cidade, desde 2015, para diminuir o número de veículos circulando na localidade refletiram positivamente no meio ambiente, com uma queda de 31% na poluição do ar, informa o governo municipal. Além de elevar a área para pedestres – e consequentemente reduzir os pontos para os automóveis –, Barcelona expandiu as ciclovias, adotou as superquadras, ativou as zonas de baixas emissões (onde é proibido que carros com maior potencial de poluição andem em determinados dias e horários) e viu crescer a procura por veículos elétricos.
Os dados recolhidos pelas estações de monitoramento da qualidade do ar nos últimos oito anos – as informações são de 2022 – revelam uma diminuição progressiva das emissões de NO2 (dióxido de nitrogênio, gás também responsável pelo efeito estufa). Nas estruturas instaladas em regiões de maior concentração de trânsito, as emissões de NO2, em 2015, eram de 55 pontos e no ano passado elas ficaram em 28 pontos. Já nas estações de menor intensidade de tráfego, essa queda foi de 38 pontos, em 2015, para 25 pontos, em 2022.
Entre as medidas para aprimorar a mobilidade e estimular as pessoas a andarem e pedalarem e a usarem o transporte coletivo estão ainda a implementação de uma nova rede de ônibus ortogonal e a ampliação do metrô de La Marina. A ciclovia da cidade conta atualmente com 240 quilômetros, o que possibilitou um incremento de 56% nas viagens de bicicleta. Por sua vez, o projeto das superquadras aperfeiçoou as calçadas, deixando as ruas mais amigáveis para os indivíduos, levando mais habitantes a optarem por fazer seus trajetos a pé. Em Sant Antoni, em L’Eixample, as intervenções que tornaram o lugar uma superquadra diminuíram em 15% o trânsito médio diário entre 2017 e 2019 e em 21% de 2017 a 2022.
Ainda conforme a administração de Barcelona, as zonas de baixa emissões viabilizaram a redução de cerca de 600 mil viagens dos automóveis mais poluentes. Contribuem também para os resultados ambientais positivos alcançados até agora a eletrificação da frota municipal da polícia urbana e das viaturas de limpeza e recolhimento de resíduos e a manutenção do home office por uma parcela dos moradores da localidade. A estimativa da prefeitura é que, antes da pandemia, em torno de 4% dos residentes da cidade trabalhavam em casa e hoje esse índice pode chegar a 8%, o que repercute na queda das viagens de carro e das emissões de gases de efeito estufa.
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