Levantamento realizado em mais de 1,1 mil cidades dos Estados Unidos e divulgado este ano investiga como as leis de uso da terra impactam a disponibilidade de habitações, o preço das unidades e a acessibilidade aos imóveis em diferentes faixas de renda. Resultados demonstram ampliação da oferta de residências em lugares com menos restrições.
A revisão das normas de zoneamento, regras que determinam o que pode ser construído em uma área, a densidade dos empreendimentos e o tipo de atividades que podem ser exercidas, vem sendo debatida em diversas localidades do mundo como um dos caminhos para resolver a escassez de moradias – no Brasil o cálculo é que faltam 5,8 milhões de unidades – e a dificuldade de acesso à habitação, especialmente entre famílias de renda mais baixa. As discussões sobre o tema colocam em lados opostos aqueles que defendem que a diminuição das restrições de uso do solo pode aumentar a oferta de imóveis e reduzir os seus valores e quem acredita que a retirada dessas barreiras não terá os reflexos esperados e pode, inclusive, manter ou elevar os preços das residências.
Para analisar os efeitos reais das leis de zoneamento nos municípios, um grupo de pesquisadores desenvolveu um amplo estudo sobre o impacto de distintas reformas de uso do solo na disponibilidade de moradias e nos valores dos aluguéis nos Estados Unidos. Eles identificaram que as iniciativas de cidades que afrouxaram as restrições de zoneamento estão ligadas a um incremento de 0,8% na oferta de habitações em um período de três a nove anos depois da aprovação das mudanças. Apesar desse crescimento ocorrer predominantemente nas unidades das faixas mais altas de locação, os reflexos para as famílias de renda muito baixa foram positivos, mas não significativos, nos anos seguintes às modificações, afirmam os autores do levantamento. A explicação, segundo eles, pode estar na pequena quantidade de imóveis para aluguel existente para o público com rendimentos menores em cada uma das localidades.
Publicada no começo deste ano, a pesquisa “Land-Use Reforms and Housing Costs: Does Allowing for Increased Density Lead to Greater Affordability? (Reformas de Uso da Terra e Custos de Moradia: permitir o aumento da densidade leva a maior acessibilidade?)” apurou ainda que as alterações que tornaram as normas de zoneamento mais rígidas e diminuíram as densidades em municípios norte-americanos estão associadas à elevação das locações destinadas a pessoas com renda média e a uma queda no número de residências para aluguel para indivíduos também de rendimentos médios. Conforme o estudo, houve um declínio de 24% na oferta de unidades para essa parcela da população em cidades que apertaram as regras de uso do solo em um período de três anos depois das mudanças das legislações.
O levantamento, efetuado por Christina Stacy, Christopher Davis, Yonah Freemark, Lydia Lo, Graham MacDonald, Vivian Zheng e Rolf Pendall – todos membros da organização sem fins lucrativos Urban Institute, sediada em Washington D.C.) –, avaliou dados de 2000 a 2019 de oito regiões metropolitanas daquele país, abrangendo 1.136 localidades. Foram reunidas ainda informações sobre a disponibilidade e os custos habitacionais. A pesquisa foi a primeira a utilizar uma abordagem de algoritmos de aprendizado de máquina para buscar em artigos de jornais uma variedade de reformas de zoneamento e, na sequência, examinar os seus efeitos em diferentes municípios simultaneamente. Esse conjunto de dados foi cruzado com informações de endereços do Serviço Postal dos Estados Unidos e do Censo para minimizar a possibilidade de erros.
Os resultados obtidos reforçam que as modificações que flexibilizaram as restrições de uso do solo estão vinculadas a um incremento na oferta de novos imóveis. No entanto, argumentam os integrantes do Urban Institute, esse crescimento é, provavelmente, insuficiente para aumentar a disponibilidade de moradias para famílias de média e baixa renda em um curto prazo, pelo menos nas cidades que fizeram parte do estudo. Os autores do levantamento salientam também que o endurecimento nas regulamentações de zoneamento está conectado ao encarecimento dos preços dos aluguéis, piorando potencialmente as condições de locatários de rendimentos médio e baixo.
Cerca de 33% das alterações nas normas de uso do solo aconteceram na Califórnia
Para entender os motivos e impactos do déficit de residências, uma quantidade cada vez maior de economistas e estudiosos das transformações urbanas vêm elaborando diversos levantamentos sobre o assunto para encontrar soluções para a crise habitacional enfrentada pelos Estados Unidos, assim como por outros países. Os reflexos da escassez de imóveis não afetam somente a oferta e os valores das unidades, eles restringem o acesso a oportunidades de trabalho, a serviços e ao lazer. O movimento de elevação dos preços das locações nos municípios norte-americanos já era uma tendência antes da pandemia de coronavírus, como pontuam os pesquisadores do Urban Institute.
Em 2021, a estimativa era que 10,7 milhões de adultos estavam inadimplentes com o aluguel nos Estados Unidos, desafios que atingem desproporcionalmente famílias de baixa renda e pessoas de cor (termo empregado naquela nação para descrever cidadãos afro-americanos, latino-americanos, asiático-americanos e nativo-americanos), pois é mais provável que eles loquem do que sejam proprietários de casas, de acordo com os autores do estudo. Uma das razões para a atual falta de moradias – nos Estados Unidos há entre 1,5 milhão e 6 milhões de residências a menos do que famílias para ocupá-las – é que a disponibilidade de habitações não conseguiu atender à demanda. Um exemplo dado no levantamento é que ao mesmo tempo que a procura por imóveis para aluguel teve um incremento em todas as faixas de renda entre 2005 e 2015, a oferta de unidades para locação custando menos que 800 dólares mensais (dados de 2016) caiu. Outra informação agregada na pesquisa é que muitas áreas metropolitanas viram os valores das propriedades subirem e as novas construções reduzirem nos últimos 25 anos.
Entre 2000 e 2019, intervalo de tempo averiguado no estudo, foram descobertos 21 tipos de regulamentos que poderiam afetar a produção de moradias e a sua disponibilidade. A partir disso, foram coletados mais de 76 mil artigos que continham menções a reformas mais ou menos restritivas, o que permitiu verificar a ocorrência de 180 grandes mudanças de uso da terra nas 1.136 localidades norte-americanas. Desse total, 84 delas tornaram as leis mais rígidas e 96 mais brandas, a maioria delas tratava de unidades habitacionais acessórias, tamanhos mínimos de lotes e ainda de limites de altura e requisitos de proporção de área edificada. Em torno de um terço dessas modificações das normas foram registradas na Califórnia, especialmente em Los Angeles, Long Beach e Anaheim. Os pesquisadores ressaltaram que as cidades que colocaram as reformas em prática tendem a ser mais populosas e a contarem com uma demanda maior por residências.
O zoneamento unifamiliar (que autoriza somente uma casa por parcela de terra) chegou ao fim na Califórnia em setembro de 2021 com a aprovação pelo governo estadual de alterações que liberaram a construção de até quatro imóveis (dois duplex ou duas propriedades com unidades anexas) em um terreno na maioria dos bairros, incluindo aqueles lugares onde antes os apartamentos eram proibidos. No entanto, até o começo deste ano, as novas regras foram pouco utilizadas, segundo levantamento revelado pelo Los Angeles Times. O trabalho do Terner Center for Housing Innovation da Universidade da Califórnia em Berkeley investigou 13 municípios californianos onde os donos de moradias pareciam mais propensos a seguir a legislação atualizada. Nesses locais, 282 pedidos de habitações alinhados com as novas normas foram solicitados, mas apenas 53 foram aprovados.
Los Angeles foi a cidade com o maior número de requerimentos: 211 enviados e 38 concedidos. Apesar do avanço lento, o editorial do jornal assinala que isso não significa que a regra falhou, porém defende que é necessário simplificar o processo e anular os regulamentos municipais para incentivar que mais duplex sejam erguidos. Pondera ainda que levará tempo para que ocorra uma mudança cultural e que mais residências sejam edificadas. O mesmo efeito deve ser sentido em outras localidades que desencadearam mudanças nos seus zoneamentos.
Combate à crise habitacional deve associar variadas frentes de atuação
Além da revisão das legislações que tratam do uso do solo, outras medidas devem ser combinadas para aumentar a oferta de imóveis, especialmente, no segmento voltado para famílias de renda mais baixa, enfatiza o estudo do Urban Institute. Conforme eles, as cidades devem considerar outros mecanismos, como vales-moradias e auxílios baseados em projetos para unidades populares para lidar com os problemas de curto e longo prazo de acessibilidade às residências. A necessidade de linhas de financiamento para que novas propriedades sejam construídas também é destacada em outra matéria da associação sem fins lucrativos de Washington D.C. que investiga a situação dentro do contexto da Califórnia.
Um dos desafios a serem superados pelos donos de casas que desejam erguer mais habitações em seus lotes é a falta de produtos de financiamento adequados. Os recursos para esse fim são escassos, os bancos relutam em participar e o mercado secundário não consegue responder totalmente à demanda crescente, relata a reportagem. Esse cenário leva os proprietários de imóveis a procurarem várias opções de financiamento para cobrir todos os custos de edificação e operação. Outro ponto sustentado no texto é que essa situação deixa as famílias e os desenvolvedores de cor em desvantagem. Além de serem atingidos de maneira mais aguda pelo déficit de moradias, obter essas linhas de crédito é mais complicado para esses cidadãos.
Devido ao racismo estrutural e há décadas de políticas que dificultaram o acesso dessas pessoas às residências, os proprietários negros têm menos riqueza e ativos líquidos que os donos de unidades brancos, o que restringe ainda mais a liberação do capital necessário para a construção de habitações. Em Los Angeles, exemplifica a matéria do Urban Institute, as evidências mostram que as famílias de cor tiveram os seus pedidos de empréstimo hipotecário tanto para casas de uma unidade como para de duas a quatro e para reformas negadas com mais frequência que pessoas brancas. Dados levantados entre 2018 e 2020 no município apontam que nos pedidos de recursos para erguer imóveis de uma unidade, 15% dos negros tiveram suas solicitações indeferidas em comparação com 11% das feitas por brancos. Já no quesito reformas residenciais, as taxas ficam em 50,7% para negros e 41,4% para brancos.
Sem opções de financiamento apropriadas para todas as faixas de renda, a edificação de moradias de baixa densidade a partir do fim do zoneamento unifamiliar na Califórnia poderia aumentar as diferenças raciais de riqueza. Uma forma para resolver essa questão, indica a reportagem, envolveria também a criação de programas públicos e privados que fornecessem capital de giro e garantias de empréstimo para desenvolvedores de cor, assim como assistência técnica a pequenos incorporadores, como consultores de habitação de baixo custo e produtos como linhas de crédito e capital de pré-desenvolvimento.
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